terça-feira, 7 de março de 2017

      Taxas de juro e utilização de papel-moeda


       por Prabhat Patnaik [*] 


       O capital financeiro sempre se opôs à utilização de medidas orçamentais
      para estimular uma economia. Isto acontece porque este estímulo orçamental
      mina a legitimidade social do capitalismo – e especialmente aquele
      segmento dele que constitui o mundo da finança e que está povoado com
      "investidores inúteis"  ("functionless investors")  nas palavras de Keynes
      ou "cortadores de cupões" nas palavras de Lenine, ou seja, de entidades
      que não desempenham qualquer papel no processo de produção. Se a
      intervenção do Estado chegar a ser vista como necessária para estimular a
      economia, então pode-se levantar a seguinte questão na mente do público:
      por que necessitamos nós destas entidades? Por que o próprio Estado não
      assume o comando e dirige toda a economia instituindo a propriedade
      pública?
       O receio de que esta questão seja levantada faz com que o capital
       financeiro se oponha à intervenção orçamental e apoie apenas aquela
      intervenção do Estado que não destrua a mística do capital – e do capital
      financeiro em particular. Ele só quer aquela forma de intervenção estatal
      de estímulo à economia que promova o "incentivo a investir" dos
      capitalistas, ou que opere através da redução do custo do crédito para os
      capitalistas.
       É por esta razão que o capital financeiro prefere antes a utilização da
      política monetária para reviver uma economia capitalista do que a
      utilização da política orçamental. E uma vez que na actual era da
      globalização temos capital financeiro que é  internacional  a
      confrontar-se com Estados que são  Estados-nação,  os últimos quer queiram
      quer não têm de aceder às exigências da finança, razão pela qual a maior
      parte dos países têm mesmo legislações de "responsabilidade orçamental"
      que descartam um estímulo orçamental, ao passo que a política monetária
      desfruta de centralidade por toda a parte.
       Contudo, na actual crise capitalista levanta-se uma situação peculiar.
      Apesar de as taxas de juro na maior parte dos países avançados terem sido
      empurradas para quase zero, tão sombria tem sido a perspectiva dos
      capitalistas sobre o crescimento da procura que muito pouco investimento
      tem surgido e, portanto, a crise continua a persistir. E ainda assim, ao
      invés de aceitar a necessidade de estímulo orçamental na presente
      conjuntura, porta-vozes da finança têm argumentado que se deveria
      perseverar na política monetária, mas que as taxas de juro deveriam ser
      conduzidas para  abaixo de zero  para ressuscitar o sistema.
       Taxas de juro negativas, entretanto, exigem duas coisas, uma das quais é
       fácil de alcançar mas a outra não. Os bancos têm acesso a fundos de duas
      maneiras: a partir de depósitos feitos pelo público e de empréstimos
      feitos pelo banco central. Se houver taxas de juro negativas nos créditos
      concedidos eles terão de ter acesso a fundos com taxas ainda mais
      negativas (de outro modo não teriam lucros). Agora, os bancos centrais
      podem cobrar taxas de juro negativas aos bancos sobre os empréstimos que
      eles fazem; isso é uma questão de decisão política. E em países onde s
       bancos centrais sã de propriedade do Estado (como na Índia, por exemplo)
      e os lucros do banco central simplesmente acrescentam-se ao orçamento do
       governo, quaisquer perdas incorridas pelo banco central através da
       cobrança de taxas de juro negativas, pelo menos sobre certos tipos de
       empréstimos feitos a bancos, saem consequentemente do orçamento. (Isto só
      ilustra incidentalmente que a oposição do capital financeiro é a meios
      orçamentais de estímulo  directo  à economia, não à colocação do orçamento
      ao serviço do capital).
       O Banco Central Europeu desde há algum tempo tem estado a cobrar taxas de
      juro negativas sobre empréstimos a bancos que posteriormente os usam para
      certas espécies específicas de desembolso creditício. Embora isto mal
      tenha qualquer impacto para reviver a economia, o próprio facto da sua
      instituição mostra que taxas de juro negativas neste sentido não são
      difíceis de alcançar.
       Mas se taxas de juro negativas tiverem de ser cobradas mais amplamente
      sobre o crédito bancário, então deve haver taxas de juro negativas também
      sobre depósitos bancários. Contudo, levanta-se aqui um obstáculo: por que
      deveria alguém depositar papel-moeda  (cash)  nos bancos se tais depósitos
      produzem taxas de juro negativas? Seria melhor aferrar-se ao próprio
      papel-moeda do que colocá-lo em bancos que dão taxas de juro negativas.
       Na verdade, manter papel-moeda traz algum risco, de roubo ou de perda por
       outros modos, que os depósitos bancários evitam (excepto em situações em
      que os próprios bancos correm o risco de falência); mas isto pode levar as
      pessoas a aceitarem no máximo uma taxa de juro muito pequena sobre o
      depósito a fim de compensar tal risco. Portanto, de modo geral pode-se
      dizer que o papel-moeda pode ter uma taxa de juro de quase zero, de modo
      que se depósitos bancários produzissem taxas negativas então ninguém
      manteria depósitos bancários. Dito de modo diferente, a utilização de
      papel-moeda estabelece um piso em zero para as taxas de depósito bancário
      – e isto descarta taxas negativas de concessão de empréstimos pelos
      bancos, as quais economistas conservadores, reflectindo a oposição do
      capital financeiro ao estímulo orçamental, acabaram por aceitar como sendo
       necessárias para o ressuscitar do capitalismo.
       A dificuldade de ter taxas de juro negativas sobre depósitos bancários é
      ilustrada pelo caso da Suécia. Enquanto bancos suecos introduziram taxas
      negativas sobre depósitos, o governo sueco permite pagamentos por conta
       (advance tax payments)  sobre os quais dá uma pequena taxa de juro
      positiva (cerca de meio por cento). Devido a isto há um súbito inchaço da
      receita fiscal do governo sueco, com a qual ele não sabe bem o que fazer.
      As pessoas simplesmente comutaram da manutenção de depósitos bancários
      para a manutenção de direitos sobre o governo na forma de pagamentos
      antecipados. E uma vez que todo o objectivo de ter taxas de depósito
      negativas é permitir aos bancos, onde tais depósitos se acumulam,
      emprestar também a taxas negativas a fim de estimular o investimento na
      economia, se os próprios depósitos encolhem então este objectivo é
      claramente derrotado.
       O caso sueco apenas ilustra a questão mais geral, nomeadamente que taxas
       de depósito negativas, e portanto taxas de concessão de empréstimo
      negativas pelo bancos numa escala generalizada, são impossíveis na medida
      em que meios alternativos de manter poder de compra que rendam uma taxa
      não negativa estejam disponíveis. Mesmo se pagamentos antecipados de
      impostos ao governo, atraindo alguma taxa positiva, não existissem, a
      simples manutenção de papel-moeda que produz uma taxa zero, impediria
      qualquer reviver da economia através de um regime de taxas de depósito
      negativas.
       Assim, alguns economistas conservadores começaram agora a argumentar em
       favor de uma abolição conjunta do papel-moeda. Proeminente entre eles
      está um economista de Harvard, Kenneth Rogoff, que foi em tempos
       economista chefe do FMI e que escreveu um livro chamado  A maldição do
      papel-moeda (The Curse of Cash)  a argumentar precisamente isto. Ele
      naturalmente não está a pedir uma abolição do papel-moeda do dia para a
      noite; encara isto como algo que deveria ocorrer ao longo de um período de
      tempo razoavelmente prolongado. Mas a razão porque isto deveria ocorrer,
       segundo ele, não é apenas a que é avançada habitualmente, inclusive pelo
      governo indiano, nomeadamente que a abolição do papel-moeda elimina
      transacções não registadas e portanto reduz o âmbito do "dinheiro negro".
      Uma importante razão, além desta, é que torna possíveis as taxas
      negativas. Se o papel-moeda for simplesmente eliminado do sistema e toda a
      gente for forçada a manter e transaccionar em depósitos bancários, então
      taxas de depósito negativas podem ser impostas ao povo sem que este seja
      capaz de fazer algo acerca disto.
       Deveriam ser notados três pontos quanto a este argumento. O primeiro é o
      seu autoritarismo absoluto. O que equivale a dizer é que para ressuscitar
      a economia capitalista de hoje deve ocorrer uma comutação maciça da
      distribuição do rendimento da generalidade do povo para os capitalistas,
      de modo que estes últimos sejam "induzidos" a fazer investimentos. Não só
      devemos nós ter capitalistas, e investimento pelos capitalistas, como
      único meio de estimular a economia (e não o gasto público), como também,
      para fazer com que os capitalistas empreendam tal investimento, o povo tem
      de suportar seja qual for o sofrimento necessário na forma de perdas de
      rendimento!
       Isto é reificação com uma vingança. A abolição do papel-moeda é advogada
      no "interesse social", isto é, para a melhoria das condições do povo. Para
      a sua própria "melhoria", portanto, o povo, de acordo com este argumento,
      deve fazer seja quais forem os sacrifícios necessários, de modo a que o
      reino dos capitalistas permaneça imperturbável e incontestável.
       O segundo ponto é que, mesmo com taxas de juro negativas, hoje é
       improvável qualquer ressurreição da economia capitalista mundial. Uma vez
      que o capitalismo moderno é dominado pelos oligopólios, os quais investem
      só de acordo com o crescimento esperado do mercado e cujo investimento é
      insensível à taxa de juro, enquanto o mercado permanecer estagnado
      (precisamente por causa desta crise) muito pouco investimento ocorreria,
      mesmo se houvesse um rebaixamento da taxa de juro até à região negativa –
      e este mesmo facto perpetuaria a crise.
       O terceiro ponto a notar é que mesmo a abolição do papel-moeda não
      pressionará as taxas de juro para a região negativa. Isto acontece porque
      haveria outros meios que seriam utilizados se o papel-moeda se tornasse
      indisponível, os quais partilham com o papel-moeda a propriedade de terem
      muito poucos "custos financeiros"  ("carrying costs"),  isto é, cujo valor
      em relação ao seu volume é enorme (de modo que o custo de armazenagem é
      mínimo), e que não sofrem muito desgaste devido à armazenagem. Um dos tais
      meios óbvios é o ouro e se se procura que o papel-moeda seja abolido então
      as pessoas simplesmente comutarão para ouro – o qual, tal como o
      papel-moeda, tem virtualmente uma taxa de juro zero se o poder de compra
      for mantido nessa forma e que portanto impõe um mínimo de zero para a taxa
      de depósito bancário.
       A espécie humana começou a sua jornada no âmago da moeda inicialmente
      através da utilização do ouro. É irónico que hoje, sob a mais avançada
      forma de capitalismo, estejam a ser feitas exigências que só nos
      empurrariam de volta para trás, para a era da moeda-ouro.
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/patnaik/patnaik_05mar17.html
5/3/2017
   

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