sexta-feira, 3 de março de 2017

Xadrez da sinuca de bico da mídia



Luis Nassif

Os jornais estão entrando em uma encrenca cada vez maior.
Diz-se que o jornalismo é o exercício do caráter. Especialmente no jornalismo
opinativo e na linha editorial dos jornais, o caráter é ponto central.
Constrói-se o caráter de cada publicação analisando seu apego aos fatos, sua
generosidade ou dureza de julgamento, sua capacidade de mediação ou parcialidade
gritante. E, principalmente, sua credibilidade, o respeito com que trata a
informação. Houve um bom período em que mesmo os adversários mais ferrenhos do
Estadão respeitavam a seriedade com que tratava os fatos.
Desde que a mídia brasileira caiu de cabeça no pós-verdade e no jornalismo de
guerra, esse quadro mudou.
No Olimpo da mídia de massa, há dois tipos de jornalistas e de celebridades: os
que seguem cegamente a linha criada pelos veículos; e os que já têm ou caminham
para ter personalidade própria, inclusive para se contrapor aos movimentos de
manada.
Nesse grupo abrigado pela mídia, pequeno, mas influente, há um mal-estar
crescente em relação ao governo Temer, à parcialidade da Lava Jato e ao próprio
esforço da mídia em dourar a pílula do governo com um jornalismo eminentemente
chapa-branca.
Por outro lado, após perder os leitores de esquerda, a velha mídia começa a
perder os de direita, que se agrupam em torno de outros veículos. E está diante
de um grave problema moral e jornalístico: qual a cara dos jornais? Que tipo de
pensamento eles representam? Qual é seu caráter?
A imagem que passam é dúbia. E a aproximação com Temer agravou radicalmente esse
quadro:
1.     Eu sei, os jornais sabem, a torcida do Flamengo sabe que o governo Temer
é eminentemente corrupto.
2.     Mesmo assim, os jornais teimam em apoiá-lo, depois de justificar o
impeachment como combate à corrupção.
Como pretendem se diferenciar dos blogs e sites jornalísticos sem tradição?
Publicando artigos sobre a pós-verdade e, ao mesmo tempo, continuando adeptos
incondicionais do jornalismo de guerra? E, agora, perdendo qualquer veleidade de
encenação de superioridade moral, apoiando uma plutocracia unanimemente
reconhecida como corrupta.
Peça 2 – o jornalismo chapa-branca
A maneira como os jornais atuam, sempre de forma concatenada, é sinal
indiscutível de uma articulação, como a de um cartel combinando preços.
Analisem os jornais de hoje. Todos batem em três teclas simultaneamente: a de
melhoria da economia e a leitura enviesada do depoimento de Marcelo Odebrecht, e
a repetição das denúncias contra o PT, todas buscando beneficiar o governo
Temer.
A crise está longe de ser vencida. Persiste a crise fiscal da União e dos
estados, os principais setores – como o automobilístico – amargam quedas
recordes, o pior bimestre nos últimos 11 anos, o desemprego avança de forma
avassaladora. E a cada dia que passa mais se escancara a natureza
fundamentalmente corrupta do governo Temer.
Como gerar notícias positivas?
O Valor Econômico, que já praticou um jornalismo mais objetivo, recorre a uma
entrevista com Michel Temer e transforma em manchete sua “previsão”: “Temer
aposta em alta do PIB acima de 3% em 2018” (https://goo.gl/tMvvs5). Fantástico!
Um deputado que jamais se interessou por temas econômicos, que não tem nenhum
histórico de previsões ou cenários, “aposta” em PIB acima de 3% e a aposta
merece manchete principal do jornal.
Já a Folha prefere transformar a pessoa física de Temer em “gestão Temer”, e
coloca na manchete principal a extraordinária informação de que a gestão vê
retomada da economia e diminui corte orçamentário. E quais os indicadores? A
informação de que a arrecadação continua caindo, sim, mas em ritmo mais lento.
Ou seja, após 8% de queda do PINB, ainda não se chegou ao fundo do poço.
Em outros cantos, o jogo de previsões sombrias de que a saída de Temer poderia
comprometer a salvação nacional, que são as reformas constitucionais empurradas
goela abaixo da população – e, por isso mesmo, extremamente vulneráveis a
futuros governos.
Assim, o jornalismo econômico e político na velha mídia fica dependendo de
alguns raros praticantes de jornalismo efetivo, como José Paulo Kupfer, do
Globo, e Vinicius Torres, da Folha. Ou ainda de analistas políticos escondidos
pelo jornal, como José Roberto Toledo, do Estadão, ou, menos escondida, Maria
Cristina Fernandes, do Valor e Bernardo Mello Franco, da Folha, Kennedy Alencar,
da CBN. E os referenciais de sempre, como Jânio de Freitas.
Peça 3 – a desinformação de quem informa
Esses contrapontos são utilizados pelos jornais não como elementos de análise,
mas como exemplo restritíssimo de biodiversidade política. No fundo, a
inteligência interna, a visão estratégica dos veículos é tão rasa quanto a do
público que cultivam, tal o desleixo com que trabalham as notícias, tal a
mesmice das análises econômicas e políticas, sem nenhum controle de qualidade,
nenhuma punição aos grandes erros factuais, e nenhuma visão de futuro.
Foi esse mesmo espírito que levou, no início de 1999, as empresas jornalísticas
à maior crise da história porque acreditaram em suas fontes do mercado
financeiro – e, muitas delas, em seus colunistas financeiros – de que não
haveria desvalorização do real.
Agora, incorrem na mesma falta de visão estratégica, no simplismo de quem não
consegue analisar os múltiplos desdobramentos do quadro econômico e político e,
especialmente, as resultantes da própria ação midiática.
Mesmo estando em jogo o futuro do jornalismo e deles, como empresas, são
incapazes de montar um conselho diversificado, capaz de traçar cenários
minimamente complexos para orientar as estratégias editoriais. Subordinam-se à
cartelização, provavelmente montada dentro do fórum do Instituto Millenium, que
é a melhor maneira de minimizar responsabilidades: afinal, se houver erros, será
coletivo. Para quem não sabe o que fazer, não deixa de ser um consolo.
Se não houver uma correção de rumos, se terá o seguinte quadro pela frente:
1.     A velha mídia vai continuar bancando um plano econômico sem nenhuma
condição de superar a crise. O plano não tem nenhum componente anticíclico. Vai
apenas prolongar a recessão e aprofundar as tensões sociais e políticas.
2.     Passar o desmonte da Previdência e do fim dos direitos sociais, sem
nenhuma espécie de negociação, em um quadro de ampla recessão, é jogar gasolina
na fogueira.
3.     Como intermediária e avalista da Lava Jato e, agora, de Temer perante a
classe média, conseguirá se desmoralizar cada vez mais perante seu público, a
exemplo do que está acontecendo com seus candidatos do PSDB, nenhum deles em
condição competitiva para 2018. Apesar de merecer esse fim, não é bom para o
país. Será o fracasso definitivo da sociedade civil, uma das últimas formas de
articulação da institucionalidade, embora profundamente corroída por anos de
discursos de ódio.
Peça 4 – o desafio das delações da Odebrecht
É assim, sem nenhuma visão, que a mídia entrará agora na cobertura das delações
da Odebrecht.
Já está delineada uma estratégia para impedir que a Lava Jato chegue nos seus.
1      A denúncia dos abusos cometidos no período anterior, no qual as vítimas
foram Lula e o PT. O destaque dado pelo Estadão à entrevista do ex-Ministro
Nelson Jobim – no qual ele desanca as ilegalidades da Lava Jato e reclama da
falta de punição aos abusos mais ostensivos – com mais de um ano de atraso.
2      A parceria renovada de Jobim com Gilmar Mendes.
3      Os inquéritos internos contra os delegados da Lava Jato, pela colocação
de escuta clandestina na cela de Alberto Yousseff e outros. Até agora
empurrou-se com a barriga o inquérito. Bastará trata-lo com seriedade para se
enquadrar os dois principais delegados da Lava Jato. Que, assim como José Serra,
decidiram abdicar de seus cargos em Curitiba e buscar paragens mais amenas.
4      O jogo de postergações de inquéritos envolvendo os parceiros da mídia e
da Procuradoria Geral da República (PGR).
Todos esses movimentos são carne fresca a alimentar o leão das ruas, que vem
embalando os sonhos de Bolsonaro, ou os sonhos com o general Villas Boas.

In
JORNAL GGN
http://jornalggn.com.br/noticia/xadrez-da-sinuca-de-bico-da-midia
3/3/2017

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