quinta-feira, 3 de março de 2016

A nova Guerra Fria financeira global



Michael Hudson (entrevista)


"A estratégia da Nova Guerra Fria é, basicamente, nunca parar de forçar outros
países a privatizar as respectivas economias para abrir-se às políticas
neoliberais. O objetivo é conseguir que os países abram as respectivas economias
às empresas e aos bancos norte-americanos."


(...) "De repente, ficou bem claro que o FMI não é instituição internacional
para promover o crescimento econômico global: é uma arma da diplomacia dos EUA
para a Guerra Fria, e diplomacia que, no governo Obama, caminhou muito
rapidamente rumo à direita.*



19/2/2016, Michael Hudson ("Guns + Butter Interview") Counterpunch
__________________________________+

Suponha que um país deva dinheiro a governo ou a agência oficial estrangeira.
Como os credores podem receber, a menos que haja uma corte internacional e
sistema para aplicar a lei? O FMI e o Banco Mundial foram parte desse sistema
para aplicar as leis, mas agora já andam dizendo "Não vamos mais participar de
sistema algum. Só trabalhamos para o Departamento de Estado dos EUA e para o
Pentágono. Se o Pentágono diz ao FMI que tudo-bem se um país não for obrigado a
pagar o que deve à Rússia ou à China, o país deixa de ter de pagar, no que tenha
a ver com o FMI. Esse novo trato rompe a ordem global criada depois da 2ª Guerra
Mundial. O mundo está sendo dividido em duas metades: a órbita do dólar
norte-americano e os países que os EUA não podem controlar e cujos governos e
altos funcionários não estão, digamos assim, na folha de pagamento dos EUA.

Dr. Michael Hudson é economista especializado em finanças e historiador. É
presidente do Instituto para o Estudo de Tendências Econômicas de Longo Prazo, é
analista financeiro de Wall Street e professor e pesquisador emérito da
University of Missouri, Kansas City. Seu livro de 1972 Super Imperialism é uma
crítica de como os EUA exploraram economicamente outros países servindo-se do
FMI e do Banco Mundial. Seu livro mais recente é Killing the Host: How Financial
Parasites and Debt Destroy the Global Economy. Hoje discutimos seu artigo "FMI
muda as regras para isolar China e Rússia"[The FMI Changes Its Rules to Isolate
China and Rússia]."

[abertura]

Bonnie Faulkner: Michael, produzi sete programas a partir das apresentações em
Rimini, sobre Moderna Teoria Monetária [orig. Modern Money Theory], dos quais
participaram Marshall Auerback, William K. Black, Stephanie Kelton, e todos
foram enormes sucessos.

Michael Hudson: Muito bom. Aquele evento foi sensacional. Quando entramos,
naquele enorme estádio de futebol, nos sentimos como se fôssemos os Beatles
entrando pela passarela central. As pessoas nos saudavam, gritavam nossos nomes,
como se fôssemos celebridadespop.

Bonnie Faulkner: Os italianos mostraram-se tão calorosos, tão entusiasmados com
uma teoria econômica alternativa. Também achei sensacional.

Michael Hudson: Yep. E as pessoas viajaram da Espanha e de toda parte. Foi dos
melhores eventos de que qualquer um de nós jamais participou.

Bonnie Faulkner: Fico feliz de ter podido participar. Um encontro, sem dúvida,
inesquecível.

Mas, voltando ao presente, li seu artigo "FMI muda as regras para isolar China
e Rússia". Fez soar um sinal de alarme sobre as implicações das mudanças das
regras do FMI, que faz empréstimos a governos. Antes de discutirmos essas
mudanças de regras no FMI: o que precipitou mudanças tão drásticas no FMI?

Michael Hudson: Há várias mudanças políticas. A primeira foi que - no passado, o
FMI jamais fez empréstimos a países que estivessem em situação de 'calote' em
dívidas com outros países. Isso porque, no passado, o governo em questão era o
governo dos EUA. Desde a 2ª Guerra Mundial todos os empréstimos para resgate ou
estabilização feitos pelo FMI e Banco Mundial sempre envolveram o governo dos
EUA, em conjunção com consórcios de bancos norte-americanos.

Pela primeira vez, agora que China e os BRICs estão crescendo, os países tomam
empréstimos não exclusivamente dos EUA submetidos às forças dos lobbies
norte-americanos, mas também tomam empréstimos de China e outros países.

A reação dos EUA foi mudar as regras do FMI. Disseram "Calma lá. Tudo bem que o
FMI empreste dinheiro a países que não pagam o que devem à China e Rússia ou a
outros BRICs, porque estamos numa nova Guerra Fria. O FMI realmente trabalha a
nosso favor". Enquanto os EUA tiverem poder de veto no FMI, o delegado deles
pode vetar empréstimo a qualquer país que deva dinheiro aos EUA, e que os EUA
não queiram apoiar. Mas não fará objeções a que o FMI empreste dinheiro a
satélites dos EUA, como a Ucrânia, que tem grandes dívidas não saldadas com a
Rússia.

Em dezembro passado, a Ucrânia devia $3 bilhões à Rússia, de empréstimo feito
pelo fundo soberano russo de investimentos. Os EUA estão fazendo de tudo para
ferir economicamente a Rússia, supondo que, se for suficientemente ferida, a
Rússia se renderá à estratégia de Washington. Os EUA estão fazendo de tudo para
ferir economicamente a Rússia, supondo que, se for suficientemente ferida, a
Rússia se renderá à estratégia de Washington.

A estratégia da Nova Guerra Fria é, basicamente, tentativa de forçar outros
países a privatizar as respectivas economias para abrir-se às políticas
neoliberais. O objetivo é conseguir que os países abram as respectivas economias
às empresas e aos bancos norte-americanos.

As mudanças nas regras do FMI aconteceram para mobilizar o FMI como,
basicamente, um agente do Departamento de Defesa dos EUA, com escritório também
em Wall Street. De repente, ficou bem claro que o FMI não é instituição
internacional para promover o crescimento econômico global: é uma arma da
diplomacia dos EUA para a Guerra Fria, e diplomacia que, no governo Obama,
caminhou muito rapidamente rumo à direita.

Bonnie Faulkner: Agora temos a Organização de Cooperação de Xangai, OCX [orig.
Shanghai Cooperation Organization, SCO] como uma aliança militar alternativa à
OTAN, e o Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura, BAII, que ameaçam
substituir o FMI e o Banco Mundial. Você acha que essas novas alternativas ao
bankingocidental podem ser bem-sucedidas? O quanto bem-sucedidas?

Michael Hudson: O grande ponto é que o sistema ocidental debanking, o Banco
Mundial e o FMI, não é sistema bem-sucedido. O FMI segue uma economia sórdida
que diz que, se você deve dinheiro a acionistas ou banqueiros de outros países,
você tem de impor arrocho (não é 'austeridade': é ARROCHO) máximo ao país, para
que pague o que deve, custe o que custar. Essa economia da sordidez que opera
atualmente diz que o arrocho capacitará os devedores a arrancar para fora do
país o máximo de dinheiro de impostos, para pagar banqueiros e acionistas
estrangeiros.

É a mesma desastrosa teoria que britânicos e norte-americanos e franceses
usaram nos anos 1920s, para insistir que o povo alemão conseguiria pagar
qualquer valor de reparação, desde que se criassem impostos suficientes sobre a
economia alemã.

Que essa teoria é falsa e viciosa já está demonstrado por John Maynard Keynes e
também pelo norte-americano Harold Moulton, da Brookings Institution. Mas as
lições dos anos 1920s foram rejeitadas pelo FMI, porque o pessoal lá sabe muito
bem - e a equipe já disse bem claramente - que nenhum arrocho jamais capacitará
país algum a pagar dívida externa alguma. Quanto mais arrocho - quanto mais
'austeridade', no jargão oficial e 'jornalístico' de mascaramento da realidade
-, menor a capacidade do país para pagar suas dívidas, e quanto mais arrocho,
mais o país terá de tomar emprestado.

É quando o FMI entra em cena, com o segundo golpe: o golpe número um é a
'austeridade' (arrocho). O golpe número dois é dizer: 'Ok, acho que nosso
programa não funcionou. Que lástima. [Na verdade, não é surpresa para ninguém, e
já aconteceu incontáveis vezes.] Então, agora, vocês têm de privatizar,
privatizar, privatizar, a indústria e os recursos naturais, tudo. E vendam as
terras.'

Isso, precisamente, é o que o FMI diz aos países devedores e é o que disseram à
Grécia, ano passado.

Quando o plano de austeridade arrocho que o FMI exigia desde 2010 não
funcionou, o FMI uniu-se ao resto da Troika (Banco Central Europeu e União
Europeia), em 2015, para exigir que a Grécia concordasse com vender suas ilhas,
seus portos, seus sistemas de abastecimento de água, tudo que ainda fosse
propriedade pública. Depois de terem destruído a Grécia, no verão de 2015,
começaram as 'negociações' com a Ucrânia.

O golpe número 1 do FMI contra a Ucrânia foi impor 'austeridade' arrocho, sob o
falso pretexto (é a economia de sarjeta do FMI) de que a Ucrânia conseguiria
pagar os acionistas estrangeiros com impostos sobre a renda que seriam extraídos
da economia doméstica. Quando o 'remédio' agravou ainda mais a 'doença', o Banco
Mundial e a [agência] USAID entraram em cena. O ministro das finanças da Ucrânia
nomeado pelos EUA pôs as garras na terra agricultável, nos direitos de venda e
distribuição de gás e em outros recursos naturais que a Ucrânia poderia vender
para quitar as dívidas com credores norte-americanos e europeus - mas não o que
a Ucrânia devia à Rússia.

A ideia geral é que, se investidores norte-americanos conseguirem comprar a
infraestrutura chave e comandar os pontos chaves da economia ucraniana,
conseguirão separa a Ucrânia, da Rússia. A Ucrânia teve papel chave na economia
russa. Muito da indústria militar e espacial russa é produzida na região do
Donbass, no leste da Ucrânia.

A ideia portanto era separar Ucrânia e Rússia, no primeiro passo, para dividir
a Rússia; depois, se tratará de dividir a China em pequenos 'pedaços'. A meta é
tratar China e Rússia como os EUA trataram o Oriente Médio, a Líbia, o Iraque, o
Afeganistão e a Síria - fazendo o que for preciso, até arrancar deles as
empresas e os recursos naturais.

Bonnie Faulkner: E qual é o objetivo do Tratado da Parceria Trans-Pacífico, TPT,
e como se opõe a projetos como o Banco Asiático de Investimento e
Infraestrutura?

Michael Hudson: Poderia dar-lhe resposta rápida e dizer que o objetivo é matar
de fome 50% da população global, abolir aposentadorias e pensões e disseminar o
mais amplamente possível a máxima miséria. Aí está realmente o efeito desse
Acordo.

A história da capa finge que tem a ver com comércio, mas a agenda real é forçar
privatizações e neutralizar qualquer regulação que os governos proponham. É o
exato contrário de toda a Era do Progresso. Nos últimos 300 anos, Europa e EUA
pressupunham que você teria uma economia mista, com governos investindo na
infraestrutura, estradas e outras vias e meios de transporte, comunicações,
sistemas de água e esgotos, gás e eletricidade. O papel de infraestrutura do
governo era atender a essas necessidades básicas a custo mínimo, para promover
uma economia competitiva, de baixos custos. Foi assim que os EUA enriqueceram.
Foi assim que a Alemanha industrializou-se e, também, foi assim que o resto da
Europa industrializou-se.

Mas o objetivo da Parceria Trans-Pacífico é reverter e privatizar todo e
qualquer investimento público. A ideologia da tal 'parceria' é que a economia
deve ser propriedade de, e operada por, agentes privados; proprietários
privados, empresas privadas, cujo objetivo é lucro de curto prazo.

Há vários outros objetivos relacionados: acabar com qualquer regulação que vise
a proteger o meio ambiente (porque aumentam os custos); acabar com qualquer
proteção ao trabalho; e acabar com qualquer projeto para criar impostos sobre
exploração de recursos naturais ou sobre as atividades do rentismo.

A ideia é converter estradas e sistemas de transporte em estradas apedagiadas,
que serão compradas por empresas estrangeiras, que imporão os preços de pedágio
que bem entenderem. A Internet e o sistema de distribuição de água serão
privatizados e convertidos em sistemas q também funcionarão por 'pedágios',
todos os serviços serão comprados, todos.

Assim se imporá uma economia de rentismo neofeudal em todo o mundo, com o
estado expulso dos setores de Finanças, Indústrias e Imobiliário.

Acho que se pode dizer que, num nível mais amplo, a ideia é apagar o Iluminismo
e restaurar o feudalismo. Pode parecer exagero, mas as pessoas ainda não se
deram conta de o quanto são radicais os acordos de investimento do Tratado da
Parceria Trans-Pacífico, TPT.

Por exemplo, quando a Austrália aumentou os impostos sobre cigarros e incluiu
nos maços avisos de que cigarros são nocivos à saúde, a Philip Morris processou
o país, exigindo receber da Austrália o que a empresa lucraria, se as pessoas
continuassem a fumar e só parassem ao morrer de câncer nas porcentagens hoje
calculadas.

Quando o Equador tentou processar empresas de petróleo por crime ambiental, as
empresas responderam, processaram o país e, hoje, o Equador tem de pagar às
petroleiras valor correspondente ao lucro que teriam se continuassem a poluir o
solo para extrair petróleo - em grau infinito. Nenhum governo em lugar algum do
mundo que assine essa 'Parceria' será jamais livre para criar leis de proteção
ao meio ambiente nem, sequer, para criar novos impostos que atinjam as empresas
financeiras ou qualquer outra empresa privada.

Essencialmente, os novos compradores das estradas que os sistemas de água e
esgoto poderiam usar passam a ser autorizados a fazer das estradas um meio de
extração de lucros, sem nenhuma lei antimonopólios que os perturbem. Implica
dizer que poder cobrar o que bem entendam, e tratar os países onde operam
exatamente como são tratados os usuários de TV por cabo em New York City. Eu
moro em Forest Hills, no Queens. Ali só há um provedor de sinal, a Time Warner.
Se eu quiser instalar um cabo para receber outros canais, sou condenado a pagar
o que quer que as empresas cobrem, e esse custo nada tem a ver com o custo de
produção dos programas. Tenho de alugar o cabo deles. Não posso comprar o cabo
para usá-lo como quiser.

Assim opera a economia rentista. Há nela ganhos que nada têm a ver com custos
de produção. Ao longo de séculos, economistas como Adam Smith, David Ricardo,
John Stuart Mill e Thorstein Veblen escreveram sobre como criar uma economia que
produziria tudo ao custo real, tecnológica e socialmente necessário, sem almoço
grátis, quer dizer, sem nenhum tipo de renda não justificável ("renda
econômica", orig. "economic rent").

O objetivo da Parceria Trans-Pacífico e sua versão 'transatlântica', para a
Europa, é promover extração de renda econômica. Esses interesses rentistas
oferecem um tipo de economia-lixo, para substituir a economia clássica, contra a
Era do Progresso e a democracia social, para criar uma ideologia de direita que
eles chamam de 'livre comércio'. Essa expressão é puro duplipensar orwelliano.

Bonnie Faulkner: As regras da Organização Mundial do Comércio foram aplicadas
contra aqueles países, que você citou antes, como a Austrália?

Michael Hudson: Acho que a Philip Morris perdeu a ação, mas mesmo assim o estado
australiano foi obrigado a gastar milhões de dólares em custas e despesas do
processo. É quase impossível para país pobre, como o Equador, e mesmo para a
Austrália, gastar esse dinheiro todo para conseguir defender-se contra aqueles
exércitos de advogados empresariais. Nos termos da Parceria TTP, os árbitros
seriam escolhidos pelo setor empresarial e seus advogados contratados.

Os julgamentos [no acordo, fala-se de "arbitragem"; o mecanismo é chamado
"mecanismo para a resolução de conflitos Investidor x Estado (MRCIE)"] são
feitos à margem do Estado e não são regidos pelas leis aprovadas por Parlamentos
eleitos: a oligarquia empresarial substitui o que hoje conhecemos como
"democracia". Decisões sobre quanto os governos terão de pagar às empresas como
reparações são tomadas por um pequeno grupo de 'árbitros' que trabalham em
regime de 'porta giratória' que conecta o Estado e as empresas. Os chamados
'árbitros' não passam de lobbyistas a serviço das empresas.

Bonnie Faulkner: A China acelerou a criação de seu sistema alternativo de
compensações internacionais [orig. China International Payments System, CIPS] e
de sistema próprio de cartões de crédito. O que é o atual Sistema Internacional
de Compensações Interbancárias [ing. SWIFT Interbank Clearing System], e o novo
sistema chinês o ameaça em algum sentido?

Michael Hudson: Todos os bancos têm um sistema de compensação dos cheques que
preenchemos, para saque em nossas contas bancárias. O sistema SWIFT é um
gigantesco programa para computadores, que torna possível mandarmos dinheiro,
por cheque de nossa conta bancária, para outros, que usam outros bancos.

Há cerca de um ano, estrategistas norte-americanos conceberam o que viria a ser
uma nova Guerra Fria contra a Rússia. Pode rapidamente tornar-se guerra militar.
Mas os EUA perceberam que poderiam ferir a economia russa sem ter de mandar
soldados. Não é mais preciso que os EUA invadam. Invasões é guerra antiquada.
Hoje, é difícil invadir outros países. Mas os EUA podem manter a Rússia como
refém - ou qualquer outro país - se, repentinamente, decidirem expulsar, a
Rússia ou qualquer país, do sistema de compensaçõesSWIFT. O país expulso do
sistema SWIFT não pode compensar cheques. Acaba paralisado. Para excluir um
país, os EUA 'embaralham' ou apagam as comunicações e conexões entre bancos.

Tão logo os norte-americanos começaram a falar sobre isso, China e Rússia
reagiram. Evidentemente, não podem admitir que um país que pode vir a
declarar-lhes guerra, tenha tanto poder. Obama e Hillary Clinton já ameaçaram
expulsar Rússia e China do sistema SWIFT.Assim sendo, os russos responderam que
muito desejariam ser parte de uma unidade global, mas dado que os EUA comandam o
sistemaSWIFT exclusivamente para atender aos seus próprios interesses e de modo
hostil, Rússia e China são obrigados a proteger os respectivos sistemas de
compensações bancárias.

A China imediatamente pôs-se a trabalhar para criar sistema próprio de
compensações bancárias.

Pessoas, empresas e organizações governamentais na China e nos demais países
BRICS deixarão a posição de reféns dos EUA, sempre a espera de um 'vírus' de
computador que os norte-americanos implantem no sistema de computação que faz as
compensações bancárias, como fizeram no sistema que controla as centrífugas
iranianas. Porque se trata disso: assim como os EUA invadiram os computadores
que controlavam as centrífugas iranianas, assim também podem invadir o sistema
SWIFT. Agora, a China e os países BRICs já são capazes de defender-se contra
esse tipo de ataque.

Bonnie Faulkner: E a China já implementou seu Sistema Chinês Internacional de
Compensações, ou são só planos?

Michael Hudson: Acho que o programa ainda está sendo desenvolvido, porque é
sistema extremamente complexo. Essas coisas têm uma inércia, é mais fácil
desenvolver programas a partir do que existe, do que desenvolver sistema
substituto. É como o programa Office, da Microsoft. Por isso os computadores Mac
usam Word e Excel. Custa bilhões de dólares escrever programa novo, sem nenhum
conflito com os existentes. Acho que os chineses ainda estão trabalhando nos
conflitos, porque, afinal, não precisam temer guerra eletrônica imediata
declarada nesse campo.

Bonnie Faulkner: O primeiro-ministro russo Vladimir Putin propôs uma parceria
ou, no mínimo, uma cooperação entre o ocidente e parceiros militares e
econômicos emergentes no outro lado do mundo. A abertura de Putin para o
ocidente parece ter caído em ouvidos surdos. O que você pensa sobre isso?

Michael Hudson: É a mesma esperança que já havia desde os anos 1990s, mesmo
antes de Putin chegar ao poder. A ideia é que a Rússia quer unir-se à OTAN, dado
que qualquer guerra atômica entre nações industrializadas está já fora de
questão.

Todos enfrentam uma ameaça comum que lhes vem do Islã wahhabista financiado
pela Arábia Saudita - o terrorismo da Xaria Wahhabista. A Rússia preocupa-se com
terroristas financiados pelos sauditas ali bem próximos de sua fronteira sul, da
Geórgia, do Azerbaijão, diretamente até a Ásia Central.

Os chineses também se preocupam com o terrorismo wahhabista, entre os uigures.

O ISIS e a Frente Al-Nusra atuam hoje como a Legião Estrangeira dos EUA.

Quando Hillary Clinton derrubou o governo da Líbia, armas e equipamentos
militares de todos os tipos foram entregues ao ISIS. Os recursos do Banco
Central da Líbia foram roubados e também foram entregues aos terroristas do
ISIS. Quando os EUA invadiram o Iraque, entregaram o exército sunita e bilhões
de dólares em notas amassadas de 100 dólares, na prática, aos terroristas do
ISIS. Assim, por mais que os EUA falem de combater o ISIS nos casos em que matem
norte-americanos, o ISIS é, basicamente, ferramenta que os EUA usam para quebrar
países que ameacem não aceitar o padrão do dólar global.

A Rússia tinha esperanças de que os EUA acabariam por entender que esse sistema
é loucura total. EUA, Rússia e Europa têm muito a ganhar no comércio
multilateral. A Europa, se conseguisse defender efetivamente seus próprios
interesses, veria que a Rússia é sua parceira comercial óbvia. Europeus e
norte-americanos, é claro, muito teriam a ganhar se investissem e reerguessem a
economia russa, porque faltam empresários naquela parte do mundo.

Mas, em vez de buscar uma esfera de prosperidade mútua entre Europa, Rússia e
os EUA, os EUA empurraram a Europa para uma zona morta de arrocho neoliberal.
Por causa disso, a economia europeia está encolhendo. Sem a Rússia, a
prosperidade europeia é praticamente impossível. Mas isso - a ruína da Europa -
é o que os EUA desejam, porque Europa próspera beneficiaria também Rússia ou
China.

A ideia dos EUA é aplicar à Rússia o mesmo tratamento que aplicaram a Cuba, Irã
e Líbia - isolar o país, à espera de que a Rússia caia de joelhos. Mas a Rússia
é muito maior que Cuba ou que a Coreia do Norte; a China, é ainda maior. E, em
vez de se renderem ao plano econômico norte-americano liberal, decidiram que
ambas as nações, Rússia e China, trabalhariam para construir um alinhamento
mutuamente defensivo. A patética diplomacia norte-americana conseguiu firmar
ainda mais uma unidade eurasiana, exatamente o que os EUA mais queriam impedir
que acontecesse.

Bonnie Faulkner: Sim. Creio que no seu artigo, a certa altura, você descreve
alguns dos membros do FMI como se vestissem coletes de explosivos, para fazer a
instituição voar pelos ares. Achei ótima a descrição.

Michael Hudson: É, mesmo, como se os EUA entrassem na reunião do FMI usando
coletes de explosivos e dissessem "Queremos que o FMI só sirva aos interesses
dos EUA, não a interesses internacionais". Assim se quebrou a ilusão de que o
FMI seria negociador honesto, interessado em ajudar os países a se estabilizar.

A pressão dos EUA mudou radicalmente várias regras. Uma das regras a que já fiz
referência é a de não emprestar a país que se recuse a pagar o que deve a outro
governo. Nada disse está registrado nos contratos que o FMI assina. Mas o que,
sim, está escrito nos estatutos do FMI é que ninguém estaria obrigado a
emprestar coisa alguma a país que visivelmente não tem nem terá tão cedo os
meios para pagar o empréstimo. É a regra chamada "nenhuma nova Argentina", que
ficou estabelecida depois que o FMI emprestou dinheiro à Argentina em 2001 para
pagar o que devia. A Argentina não tinha qualquer chance de pagar por esse
empréstimo.

O FMI quebrou essa regra depois de 2010, quando emprestou à Grécia. Alguns
funcionários deixaram o FMI, ao ver ignoradas as suas análises. A diretoria do
FMI perguntou como poderia emprestar aquele dinheiro à Grécia para que a Grécia
pagasse o que devia a bancos alemães, franceses e ingleses, e resgatar
acionistas, sem definir como a Grécia pagaria o empréstimo.

O então diretor do FMI, Dominique Strauss-Kahn, atropelou a equipe e membros da
diretoria e criou uma nova regra, chamada "de risco sistêmico". Por essa regra,
o FMI ficava autorizado a violar as regras da própria constituição e emprestar a
qualquer país (mesmo que fosse devedor inadimplente), no caso de o risco de o
país não pagar o empréstimo gerasse risco a muitos países. Na prática, o FMI
definiu que haveria risco sistêmico sempre que houvesse risco de qualquer
acionista perder mais de $1. Essa perda derrubaria a "confiança". Então, para
salvar bancos e acionistas do fundo, a economia seria detonada pela deflação da
dívida. Vale lembrar que há poucos dias, dia 29/1/2016, o FMI cancelou essa
'regra'. Declarou que não voltará a aplicá-la.

Outro elemento presente na lei de constituição do FMI estipulava que o FMI não
emprestará a país em guerra. A razão óbvia é que, se um país está em guerra,
guerra civil sobretudo, que esteja destruindo o setor de exportação - como a
Ucrânia está fazendo -, de onde obterá as dividas necessárias para pagar sua
dívida externa? A Ucrânia exportava para a Rússia praticamente tudo q produzia.
O ataque contra o Donbass e o leste da Ucrânia destruiu toda a indústria
ucraniana de exportação.

Os EUA super turbinaram o FMI para que fizesse o empréstimo à Ucrânia. A
diretora do FMI, Christine Lagarde disse que esperava que a Ucrânia não gastasse
todo o dinheiro em mais guerra. Na verdade, 1,5 bilhão de dólares foram
entregues a banqueiros cleptocratas como Kolomoiski, que imediatamente retirou
do país todo o dinheiro, ao mesmo tempo em que usou o dinheiro que tinha na
Ucrânia para financiar um exército anti-Donbas. Dia seguinte, o presidente
Poroshenko declarou que então, afinal, a Ucrânia podia continuar e ampliar a
guerra.

A quarta regra que o FMI quebrou é a de não emprestar a país onde seja baixa a
probabilidade de que se implante um programa de arrocho [orig. "austeridade"].
Chamam a isso uma "condicionalidade". Implica calar qualquer oposição
democrática. A Ucrânia está reduzindo pensões e impondo regras de arrocho as
mais ferozes, o que implica dizer que é mínima a chance de o país sobreviver
como democracia.

Os EUA já se manifestaram e já reconheceram que estão desistindo de fingir que
seriam país que só apoia democracias. Nos anos 1960s e '70s apoiaram incontáveis
ditaduras na América Latina, inclusive a derrubada de Allende no Chile.

E agora o FMI emprestará a países em guerra, mesmo quando não haja qualquer
possibilidade de o empréstimo ser pago, bastando, para obter dinheiro, que o
país que solicite o empréstimo faça o que os estrategistas norte-americanos lhe
ordenem. E não emprestará a país que precise do dinheiro para pagar dívidas a
bancos russos ou a bancos dos países BRICS.

Bonnie Faulkner: Michael, você até já começou a responder essa pergunta, mas
talvez possa acrescentar mais alguma coisa. O Fundo Nacional Soberano Russo
emprestou dinheiro à Ucrânia. Você já falou disso. Esse empréstimo foi protegido
pelas cláusulas de empréstimo do FMI, e os papéis foram registrados nos termos
definidos pelas leis e tribunais comerciais de Londres. Explique, por favor,
como as regras do FMI e o Banco Mundial protegiam a estrutura original das
práticas de empréstimos soberanos pós-2ª Guerra Mundial.

Michael Hudson: O FMI disse que não emprestaria dinheiro a país que devesse
dinheiro, ou estivesse em estado de 'calote' de dívida com qualquer governo, ou
que não negociasse de boa fé para pagar governos estrangeiros. Ucrânia devia $3
bilhões ao Fundo Nacional Soberano Russo - obviamente, uma organização
governamental. O empréstimo russo foi feito em termos de concessão, mas não sem
qualquer proteção. Dado que se tratava do Fundo Nacional Soberano Russo, ele se
autoprotegeu, registrando a transação na Inglaterra. Tem havido muita discussão
na Rússia sobre se a Ucrânia conseguirá safar-se sem ter de pagar o que deve à
Rússia.

Ano passado, o Tesouro dos EUA teve longa discussão com advogados de bancos
sobre o que a Ucrânia deveria fazer para continuar em condições de para receber
novos empréstimos do FMI. Agora, aí está. Já conhecemos a resposta: mudaram-se
as regras do FMI. Não esqueçamos que a União Europeia e os bancos
internacionais, como regra geral, não se alistam em consórcios para conceder
empréstimos a país que não se qualifique para obter empréstimos do FMI. Para
receber empréstimos dessas organizações, o país devedor tem de ter 'ficha limpa'
no FMI.

Agora, a diferença é que, em vez de proteger o sistema de empréstimos para
todos países e governos, o FMI só protegerá empréstimos a países que gravitem na
órbita dos EUA. Governos que não obedeçam aos EUA ficam sem crédito e sem
dinheiro. Na prática, esses governos que 'não obedecem' aos EUA são todos que
não implantem políticas neoliberais as mais rígidas.

Bem resumidamente, tudo isso foi feito porque os EUA estavam decididos e
retirar da Rússia o direito e a capacidade legal para cobrar (e eventualmente
receber) os $3 bilhões que a Ucrânia tomou emprestados.

Discutiu-se até se a Ucrânia poderia declarar "odiosa" a dívida que os russos
estavam cobrando, porque 'tudo' que pertencesse à Rússia teria passado a poder
ser declarado 'odioso', desde que Obama 'declarou' que Putin seria cleptocrata e
corrupto.

Ora, durante 50 anos os EUA emprestaram dinheiro a fundo perdido a todos os
tipos de ditadores corruptos na América Latina, África e Ásia, todos
absolutamente corruptos, de Pinochet, ladeira abaixo, até Tony Blair.

Verdade é que os EUA fizeram voar pelos ares todo o arcabouço legal e legítimo
da lei internacional.

A Ucrânia sabe que perderá nos tribunais britânicos, onde a transação está
registrada, seja qual for a sua tentativa de escapar de pagar o que deve à
Rússia. As cortes inglesas tendem a garantir os direitos do credor. Mas, pelo
menos, os EUA conseguiram passar aquele derradeiro empréstimo, diretamente às
mãos da cleptocracia ucraniana.

A Ucrânia e seus apoiadores nos EUA talvez suponham que, com o petróleo a menos
de $30 o barril, e com a Rússia precisando de dinheiro, conseguirão dobrar a
Rússia aos desejos dos EUA. É perfeita insanidade, porque já é perfeitamente
visível que a Rússia não se renderá. Há poucos dias, o ministro de Relações
Exteriores da Rússia Sergei Lavrov anunciou que a Rússia está repensando seu
relacionamento com o ocidente.

É óbvio que os EUA opõem-se a quaisquer laços econômicos entre Alemanha e
outros países europeus, e a Rússia. Assim sendo, a Rússia está repensando o
próprio relacionamento com a Europa. Ora! Se a Europa age como se quisesse ser o
51º estado dos EUA, em vez de defender os interesses de seus próprios cidadãos,
os russos, claro, se orientarão na direção da China e dos demais BRICs. É
péssimo para os EUA e para a Europa. Melhor seria um relacionamento amigável,
para maior prosperidade de todos.

Bonnie Faulkner: Você deu ao seu artigo o título de "FMI muda as regras para
isolar China e Rússia", porque é o que estavam fazendo. O objetivo por trás da
mudança nas regras é isolar China e Rússia. Mas China e Rússia estavam
cooperando com o FMI e o Banco Mundial, não estavam?

Michael Hudson: Sim, estavam. O principal objetivo da estratégia dos EUA desde o
início sempre foi a China. Os EUA passaram três anos discutindo abertamente o
que fazer para isolar a China. Os EUA não querem ver nenhum grande Estado
potencialmente independente. Tudo bem que a mão de obra chinesa trabalhe sob
salários super arrochados para abastecer as prateleiras de Wal-Mart com itens
exportados de baixo preço. Mas os EUA não podem admitir uma China potência
independente.

A China deu aos importadores e investidores norte-americanos importantes
interesses comuns a favor dos quais fazerem lobby para impedir que o governo dos
EUA intensificasse sua Guerra Fria contra a China. Mas a Rússia não tem o mesmo
poder de alavancagem, porque não tem tantos meios, como tem a China, para
enriquecer gente do outro lado do mundo, especialmente depois que os russos
meteram Khodakovsky na cadeia, quando ele tentou vender sua petroleira Yukos
para a Exxon. Na essência, seria vender o controle do petróleo russo,
extraindo-o do patrimônio nacional russo. As vendas e lucros certamente
encolheriam, depois que os contadores da Exxon usassem todas as estratégias que
conhecem para sonegar impostos, servindo-se de bandeiras de conveniência e
bancos em paraísos fiscais para fazer desaparecer qualquer lucro taxável.

A China quer que sua moeda torne-se item da cesta global de moedas do FMI. Quer
estabelecer o yuan com status igual ao do dólar, para que não precise depender
de bancos norte-americanos para suas exportações, e, sobretudo, para criar
crédito doméstico.

A China quer evitar o os neoliberais neoconservadores norte-americanos fizeram
à Rússia em 1992 e 1993. Naquele momento, eles convenceram a Rússia de que o
banco central russo não poderia viver ser dólares norte-americanos que serviriam
como lastro para o rublo. Dado que a Rússia não tinha grande quantidade de
dólares norte-americanos, o resultado foi deflação drástica ("terapia de choque"
sem terapia). Efeito disso na Rússia, foi a desindustrialização.

Não havia necessidade alguma de a Rússia tomar empréstimos em moeda estrangeira
para saldar despesas domésticas com a própria indústria e força de trabalho. O
rublo foi transformado em moeda satélite do dólar, até que quebrou, no crash de
1997, quando os capitais - em torno de $25 bilhões ao ano - fugiram para a libra
esterlina e o dólar.

Isso, precisamente, é o que a China quer evitar. Querem livrar-se de depender
do dólar, exceto o que for necessário para importar dos EUA ou para defender a
moeda contra ataques. George Soros disse que espera que o yuan caia. É 'aviso'
para que os especuladores ponham-se a tentar derrubar a moeda. Os chineses estão
tentando livrar-se de interconexões com a órbita do dólar, exceto o necessário
para importar dos EUA - que acho que não é muito, exceto no caso de filmes.

Bonnie Faulkner: Você mencionou quatro das próprias regras, que o FMI infringiu
ao emprestar dinheiro à Ucrânia. Será que você se incomodaria de comentar
novamente aquelas quatro regras, para que as pessoas não percam de vista a
extensão da mudança?

Michael Hudson: A primeira regra foi a de não emprestar a país que não tivesse
meios visíveis para pagar o empréstimo. É a chamada regra "nenhuma nova
Argentina". Já havia sido quebrada no empréstimo à Grécia, quando Strauss-Kahn
introduziu o tal de "risco sistêmico" para proteger os bancos.

A segunda regra foi não emprestar a país que tenha dado calote, quer dizer, que
tenha renegado as dívidas que tivesse com credores oficiais, quer dizer, país
que tivesse declarado que não pagaria o que devesse a outro país. Essa regra
tornou o FMI uma espécie de 'cobrador' mafioso a serviço do cartel de credores.
Hoje porém já é 'cobrador' mafioso a serviço dos só dos credores que os EUA
protejam.

A terceira regra é não emprestar a país em guerra. A Ucrânia está em guerra,
guerra civil contra o leste do país. Mas como o Donbass é apoiado pela Rússia, a
regra não valeu nesse caso.

A quarta regra é não emprestar a país que não imponha à população as regras do
arrocho [o FMI chama de "regras de austeridade"] do FMI, que empobrecem de tal
modo o país que entram rapidamente em bancarrota e têm de vender o próprio
patrimônio (terras e recursos naturais). O governo golpista da Ucrânia não pode
impor a receita de arrocho do FMI sem ser arrancado do poder, mas pode vender
terra e direitos de extração de gás natural a Soros e à Monsanto. Então, nesse
caso, a regra não valeu.

Essas quatro regras foram infringidas. A Ucrânia ainda não começou a vender os
próprios recursos naturais, e há alguma discussão em curso sobre isso, porque os
cleptocratas locais querem continuar proprietários daqueles recursos e fazer o
mesmo negócio que seus contrapartes russos fizeram no início dos anos 90s:
venderão nas bolsas de valores de EUA e Grã-Bretanha coisa como 25% do monopólio
que hoje é deles; os compradores encarregam-se de fazer subir e subir o preço, e
depois vendem os seus 75%, para receber em Londres, New York ou onde for. O que
importa é tirar da Ucrânia todos os valores, deixando o país sem fundos, e
devendo anualmente quantidades enorme de dinheiro, com o patrimônio nacional
vendido na bacia das almas.

Bonnie Faulkner: Você diz que a questão entre Oriente e Ocidente é uma filosofia
do desenvolvimento. Em que o desenvolvimento difere nos dois sistemas?

Michael Hudson: A filosofia neoliberal norte-americana do desenvolvimento é uma
espécie de conceito orwelliano oco; chamam de "desenvolvimento" o que é ausência
de desenvolvimento. Como se fosse "desenvolvimento reverso". O plano neoliberal
é criar uma sociedade pós-industrial. "Pós-industrial" nessa caso significa
economia "neo-rentista" que volta ao feudalismo.

Em vez de os governos assumirem o comando e proverem serviços básicos a baixos
preços para que o país construa economia competitiva, os governo
neoliberalizados vendem estradas e energia, água e esgotos a compradores que
cobrarão por tudo, bem ou serviço, que encontre demanda no mercado. É a via mais
curta para empobrecer o país. É o oposto do que fez a economia do
desenvolvimento ao longo de quase todo o século 20.

Bonnie Faulkner: Que tipo de cenário o Departamento de Estado e o Tesouro dos
EUA discutem há mais de um ano, como meio para se opor aos empréstimos para
infraestrutura que chineses e russos têm feito a outros países? Acho que você já
falou um pouco sobre isso.

Michael Hudson: Os EUA não se integraram ao Banco Asiático de Investimento e
Infraestrutura, e fizeram de tudo para induzir outros países a não se
integrarem. Houve muita gritaria e ranger de dentes quando a Inglaterra
integrou-se ao BAII e outros países tentaram segui-la. Os EUA estão tentando
criar uma cortina de ferro que impeça que os BRICS escapem da órbita do dólar
norte-americano. É uma cortina financeira - não é cortina de ferro: é cortina
eletrônica.

Bonnie Faulkner: Naquele artigo, você escreveu que o FMI seguiria emprestando
aos países e dizendo a eles que não têm obrigação de pagar o que devem a Rússia
e China, mas que sempre poderão tomar empréstimos do FMI?

Michael Hudson: Não é que o FMI vá e diga aos países que não paguem o que devem.
O problema é que não há corte internacional. Não há agente que obrigue a cumprir
as leis e fiscalize com eficácia se as leis estão ou não estão sendo cumpridas.
Por exemplo, há incontáveis fundos abutres a gritar que a Argentina deve
dinheiro a eles, mas até agora não conseguiram cobrar coisa alguma. Conseguiram
que a Nigéria confiscasse um navio-escola argentino, mas, porque era propriedade
do Estado argentino, o país teve de deixá-lo partir.

Suponha que um país deva dinheiro a outro governo ou agência oficial. Como os
credores conseguirão receber, se não houver corte internacional e sistema de
aplicação das sentenças e decisões daquela corte? O FMI e o Banco Mundial foram
parte desse sistema para fazer pagar, mas agora tudo mudou. Agora, o FMI está
dizendo 'Não faremos mais o que fazíamos. Agora só trabalhamos, exclusivamente,
para o Departamento de Estado e para o Pentágono dos EUA.' Se o Pentágono diz ao
FMI que 'tudo-bem', que tal ou qual país não precisa pagar o que deve à Rússia
ou à China, então o país não tem de pagar - pelo menos no que tenha a ver com o
FMI.

Esse é o movimento que rompe toda a ordem global que foi criada depois da 2ª
Guerra Mundial. O mundo está sendo dividido em duas metades: a órbita do dólar
dos EUA, e países que os EUA não conseguem controlar e cujos governantes e
funcionários não estão na folha de pagamento dos EUA, digamos assim.

Bonnie Faulkner: No artigo, você fala de mudança geopolítica tectônica, que será
combatida com a fúria de uma Inquisição do Século Norte-americano.[1] O que você
quer dizer com "Inquisição"?

Michael Hudson: Todos os truques mais sujos, golpes de todo o tipo. O presidente
Obama disse que não vamos invadir país nenhum, porque nenhum país consegue
realmente mobilizar soldados em número suficiente, sem criar crise econômica e
política no âmbito interno. Dado que não pode fazer guerra à moda antiga, Obama
optou pela via das listas de matar e dos assassinados planejados dentro do
Departamento de Estado ou noutras áreas do governo dos EUA. Mas os EUA já fazem
isso há muito tempo, já fizeram no Chile, no governo Nixon/Kissinger, e na
Guatemala e Nicarágua no governo Reagan.

Ou, de modo mais simples, subornam governos para forçá-los a promover gente em
países estrangeiros que trabalham para os EUA. Você tem alguma dúvida de que na
Inglaterra, por exemplo, se alguém como Tony Blair torna-se primeiro-ministro,
ele deixará de fazer qualquer coisa que os EUA o mandem fazer?

Se querem garantir que nada aconteça, mesmo no caso de um país realmente
trabalhar para ser independente, como o Chile trabalhou, por exemplo, os EUA vão
até lá e assassinam o presidente eleito. Se num ou noutro país há movimento
consistente a favor da reforma agrária, os EUA lançam lá a Operação Condor e
matam 10 mil professores, militantes e líderes sindicais que trabalhavam a favor
da reforma agrária. Na essência e no espírito, é política terrorista.

Por fim, os EUA usam o ISIS e a Frente al-Nusra como uma Legião Estrangeira dos
EUA e os mandam para qualquer país que queiram destruir e saquear.

Bonnie Faulkner: Você escreveu: "Esperava-se que o capitalismo industrial
clássico de há um século se convertesse numa economia de abundância. Em vez
disso, temos o capitalismo do Pentágono, o capitalismo da finança, já
deteriorado numa economia rentista polarizada e num imperialismo senil, fanado.
(...) Se e quando a ruptura acontecer, não será marginal, mas mudança
geopolítica sísmica."[2] O que você pensa da ruptura que se aproxima, do sistema
financeiro global dolarizado pós-2ª Guerra Mundial? Como será?

Michael Hudson: Outros países tentarão enriquecer do mesmo modo como os EUA
tentaram enriquecer: promovendo a prosperidade, um mercado doméstico,
subsidiando pesquisa e desenvolvimento, exatamente como os EUA subsidiaram a
tecnologia de ponta. E vão tentar impedir o rentismo - impedir que haja
privilegiados, sejam donos de patentes ou donos de sistemas de TV a cabo. O
objetivo sempre é evitar os super-lucros, ou a "renda econômica", ganho
excessivo, além de qualquer investimento e independente de qualquer
investimento.

É normal desejar que as pessoas lucrem de modo que reflita a verdadeira
contribuição delas à produção, e sempre se quer garantir melhor status ao
trabalho. Queremos sempre educar nossa força de trabalho, fazer dela uma força
de trabalho tecnológica moderna.

Para isso, é indispensável que haja subsídios governamentais. Daí uma economia
mista, com setores públicos e setores privados, na qual os governos pagam pelos
custos de infraestrutura com vista a ajudar o setor privado, garantindo a todos
melhores condições de concorrência.

Quero dizer: outros países evidentemente podem fazer o que os EUA fazem desde
sua Guerra Civil. Serão protecionistas, tentarão melhorar a qualificação da
própria mão de obra, e melhorar também a qualidade da própria agricultura.
Promoverão indústrias de ponta, saúde pública e atenderão outras demandas
básicas. Assim poderão alcançar o que a social-democracia se propôs a alcançar
há um século, na Era Progressista. Esse, precisamente, é o caminho que EUA e
Europa resolveram fechar, proibir a entrada de qualquer outro estado ou povo.

Bonnie Faulkner: Em seu artigo, você escreveu que o resultado foi "criar e
reforçar uma nova Cortina de Ferro que dividirá o mundo em, de um lado,
economias pró-EUA cada dia mais neoliberais; e, de outro, o resto, inclusive
economias que busquem manter o investimento público em infraestrutura, impostos
progressivos e o que, antes, se conheceu como um capitalismo progressista."[3]

Michael Hudson: Acho que quando a União Soviética acabou e Rússia e outros
países convidaram conselheiros norte-americanos, aqueles países provavelmente
esperavam que aqueles neoliberais os ajudariam a desenvolver-se como os EUA, e a
alcançar a prosperidade de uma economia industrial e produtiva como a
norte-americana.

Os russos não se deram conta de que os EUA não tinham nenhuma intenção de
ajudá-los a enriquecer ao ponto de enriquecimento que os EUA chegaram e pelo
modo como chegaram. Os conselheiros norte-americanos chegaram para destruir e
saquear. Foram eles que desindustrializaram a Rússia e também os Bálticos
apertando todos os elos de conexão que haviam mantido coesa a União Soviética.
Resultado, a Rússia foi empurrada para trás e voltou a ser fornecedora de
matérias-primas.

O resultado não foi só a pobreza, foi também a emigração em massa. A República
da Latvia, por exemplo, é aplaudida como um "milagre do Báltico", como se fosse
história de sucesso. O milagre é que os salários nunca pararam de cair durante a
última década, levando 10-20% da população a ter de deixar o país -
principalmente a população em idade laboral. O mesmo aconteceu na Rússia. Muitos
dos engenheiros e outros profissionais treinados partiram para os EUA, onde
ajudaram a industrialização. Neoliberalizar a Rússia não tornou o país mais
próspero. Mas, por algum tempo, enriqueceu investidores norte-americanos.

Bonnie Faulkner: E sobre os pacotes de empréstimo do FMI à Grécia pós-2010? São
caso também de quebra de regras no FMI?

Michael Hudson: Foi quando aconteceu o debate dentro do FMI sobre a regra de
"nenhuma nova Argentina". Não cabia esperar que o FMI viesse a emprestar a país
que visivelmente não teria como pagar o empréstimo. Meu livro Killing the Host
trata disso.

Há três capítulos sobre a Grécia, que é exemplar de como, no passado, o FMI
esmagou países do Terceiro Mundo, quase sempre para beneficiar empresas
norte-americanas de minérios e outros exportadores também norte-americanos. Mas
a Grécia foi o primeiro país europeu ao qual o FMI chegou explicitamente para
esmagar, com o objetivo de privatizar tudo. Também escrevi um capítulo sobre a
Latvia. Esse é, precisamente, o assunto de Killing the Host [Matar o anfitrião].

Bonnie Faulkner: Você escreve que Dominique Strauss-Kahn apoiou a posição
linha-dura do Banco Central Europeu e EUA no caso da Grécia. E também Christine
Lagarde em 2015, apesar dos protestos da equipe no FMI.

Michael Hudson: A equipe do FMI declaradamente se opôs a qualquer empréstimo à
Grécia, porque o país não tinha condições de pagar. Mas foi quando Strauss-Kahn
encontrou-se com o presidente Sarkozy da França e disse que tinha planos para
candidatar-se à presidência. Sarkozy disse a ele que de modo algum conseguiria
sucesso eleitoral na França se, como presidente do FMI, agisse de modo a expor o
Fundo ao calote previsível que os gregos lhe aplicariam. Mas vários bancos
franceses teriam sido atingidos se o FMI não os 'resgatasse', quer dizer, se não
emprestasse o dinheiro ao governo grego, apenas para que fosse repassado aos
bancos franceses, e o FMI engoliria o prejuízo.

Então, o presidente Obama foi à reunião do G-20, depois que Tim Geithner,
secretário do Tesouro já falara ao telefone com toda a Europa, para dizer que,
se a Grécia não pagasse o que devia a bancos e acionistas franceses e alemães,
os bancos norte-americanos teriam graves prejuízos - e o mesmo aconteceria
também com grandes bancos europeus, todos com dívidas encadeadas uns com os
outros.

Por isso - porque todo o sistema desabaria, quer dizer, porque grandes bancos
norte-americanos perderiam dinheiro -, mesmo que Strauss-Kahn já soubesse que a
Grécia não poderia pagar, o empréstimo foi autorizado. Obama e Geithner disseram
que o FMI não podia deixar que os apostadores norte-americanos perdessem o
dinheiro que apostaram naquele determinado cavalo financeiro. Ficou resolvido
que melhor quebrar a Grécia, mesmo que significasse quebrar a Europa. O
troca-troca foi esse: para salvar os bancos, destruíram a economia grega.

A assimetria da posição autista, autorreferente dos EUA é enorme. É ganância
nua. Estão dispostos a esmagar o FMI, a Grécia e a integração europeia, só para
que Goldman Sachs e bancos de Wall Street que jogaram suas fichas na Grécia não
sofressem qualquer prejuízo.

Foi o que levou à renúncia da presidenta da seção europeia do FMI. Se bem me
lembro, ela viajou ao Canadá, e os canadenses publicaram tudo que ela tinha a
revelar e revelou. Destruiu completamente a credibilidade do FMI, já antes da
crise ucraniana.

Bonnie Faulkner: Você escreveu que a razão pela qual a economia grega foi
esmagada teria sido a urgência em deter o [partido] Podemos na Espanha, e
movimentos semelhantes na Itália e em Portugal, todos com plataformas a favor de
buscar antes a prosperidade nacional que a 'austeridade' [o arrocho] da
Eurozona. Você acha mesmo que esse componente também tenha pesado?

Michael Hudson: Foi precisamente o que o Banco Central Europeu declarou.
Disseram com todas as letras que 'Não podemos deixar que o Syriza vença'. O
ministro de Finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, contou que lhe disseram,
durante reunião com o FMI e os europeus, que a democracia era o que menos os
preocupava. Que nenhuma diferença faria quem fosse eleito. Qualquer novo governo
grego seria obrigada a pagar as dúvidas contraídas pelo governo corrupto que
precedeu o governo do Syriza.

O Financial Times e praticamente toda a imprensa ocidental sabiam e publicaram
que, se a dívida grega fosse perdoada, para salvar o país da bancarrota, o FMI e
o resto da troika da União Europeia teriam de perdoar dívidas de Itália, Espanha
e Portugal. Todo o sistema de cobrança de empréstimo ruiria. Diante do impasse
entre salvar os bancos ou salvar a economia, a troika optou por salvar os
bancos, e quebrar as economias nacionais.

Foi também o que fez o presidente Obama nos EUA, quando 'resgatou' os bancos,
em 2008. Essa é a causa fundamental que hoje dá vida à candidatura de Bernie
Sanders.

Em resumo, a órbita dos EUA sempre diz 'salve os bancos, não a economia.' O
problema é que o volume dos juros das dívidas cresce exponencialmente. Significa
que as dívidas cresceram exponencialmente. Com isso, os países devedores serão
sempre obrigados a impor arrocho [não é 'austeridade': é arrocho] cada vez mais
apertado. E as economias às quais se impuser arrocho sem fim reagirão como a
Rússia, nos anos 90s, ou Latvia ou a Grécia: haverá emigração em massa, queda
nos índices de natalidade, aumento nos índices de mortalidade e crescimento de
incidência de doenças muitas das quais já erradicadas. Os mercados encolherão,
ao ritmo em que a economia dos países devedores for sendo sufocada.

A grande luta que se trava hoje é sobre salvar os bancos ou salvar a economia.
No final, os bancos não podem ser salvos eternamente, porque s cada dia mais
dívidas tornam-se impagáveis. A posição dos EUA de fato é bem clara: 'Pouco
importa que as dívidas sejam impagáveis, porque sempre há patrimônio dos estados
que poderá ser vendido a preço de liquidação a empresas norte-americanas
interessadas'.

Portanto, o que se vê hoje, é um vasto processo global pelo qual bancos
credores tomam propriedades de devedores inadimplentes [ing.foreclosure
process].

Os credores e acionistas, de fato, estão cobrando o que lhes é oficialmente
devido, à moda Máfia, confiscando estradas, sistemas de transporte, sistemas de
comunicações, sistemas de água e esgoto e todo o tipo de infraestrutura. Chamo a
isso "neofeudalismo". É forçar o capitalismo industrial a regredir. Estão
forçando os mercados a encolher e toda a economia é 'desidratada': é o
neofeudalismo.

Isso, precisamente, é a economia rentista. É economia de extração de rendas,
não é economia que gere crescimento porque produza sempre mais e contrate
mão-de-obra para fazer a economia expandir-se. É o contrário. É a dinâmica
reversa do capitalismo, como se pensava o capitalismo há cem anos passados.

Bonnie Faulkner: Michael Hudson, obrigada pela entrevista.

Michael Hudson: É sempre muito bom participar de seu programa. É ótimo que você
esteja de volta, Bonnie.*****+




* Desde 2003, o Brasil não mais tomou empréstimos do FMI; em 2005, na gestão do
ministro Palocci no Ministério da Fazenda do governo do presidente Lula, o país
pagou todas as suas dívidas e tornou-se credor do FMI (mais sobre isso em Exame,
10/2/2005).

Agora, em 2016, Brasil passará a ser 10º maior cotista do FMI. Pela 1ª vez, 4
emergentes - Brasil, Rússia, Índia e China - estarão entre os dez maiores
cotistas do fundo (mais sobre isso em O Globo, 22/2/2016) [NTs].

[1] "Rússia e China estão fazendo, simplesmente, o que EUA fazem há muito tempo:
usar laços comerciais e de crédito, para cimentar a própria diplomacia
geopolítica. Mas a novidade chinesa é uma mudança geopolítica tectônica, e
ameaça de dimensões copernicanas à ideologia da Nova Guerra Fria.

Em vez de a economia mundial gravitar em torno dos EUA (a ideia ptolomaica
segundo a qual os EUA seriam "a nação indispensável) pode acontecer de ela
passar a gravitar em torno da Eurásia. Enquanto a sede papal continuar plantada
em Washington nos gabinetes do FMI e do Banco Central, aquela mudança no centro
de gravidade seria combatida com a fúria total da Inquisição do Século
Norte-americano (de fato, Inquisição do Milênio Norte-americano)." HUDSON,
Michael, "FMI altera regras, para isolar China e Rússia", traduzido em Patria
Latina [NTs].+


In
port.pravda.ru
http://port.pravda.ru/busines/29-02-2016/40479-guerra_financeira-0/#
29/2/2016

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