sábado, 5 de março de 2016

Como superar os males do lulismo





por Hamilton Octavio de Souza [*]

As várias forças políticas que comungam os ideais da esquerda, no Brasil,
precisam urgentemente reconstruir os seus instrumentos de luta na
sociedade com análises, propostas e ações qualificadas para superar os
danos gerais causados pelo lulismo, que é responsável não apenas pela
descaracterização ideológica do Partido dos Trabalhadores, mas
fundamentalmente pela rendição, domesticação e desarticulação das
principais entidades e movimentos sociais populares construídos pelas
classes trabalhadoras nas lutas de 1970, 1980 e 1990. Naquelas décadas
nasceram a CUT, MST, MNU, CMP, Grito dos Excluídos, inúmeros movimentos de
luta por moradia, centenas de organizações voltadas para a defesa dos
direitos humanos, das mulheres, dos negros, da juventude e do movimento
LGBT.

Com essas ferramentas, a força espetacular do povo deu as caras na
Assembleia Constituinte que aprovou a Constituição de 1988; deu as caras
na campanha eleitoral de Luiza Erundina, em São Paulo, em 1988; deu as
caras na campanha eleitoral de Lula, em 1989; deu as caras no impeachment
de Collor em 1992; deu as caras nas grandes manifestações contra as
privatizações do governo FHC. Mas, gradativamente, o lulismo tratou de
hegemonizar a rebeldia popular e de excluir as correntes de esquerda que
atuavam dentro do PT; tratou de sufocar inúmeras lideranças combativas
surgidas interna e externamente, até culminar na aliança explícita com o
empresariado nas eleições de 2002, tendo como vice o industrial José
Alencar.

A trajetória do lulismo é a história de uma liderança popular surgida no
meio operário e na ascensão da classe trabalhadora contra o arrocho
salarial da ditadura militar, na retomada do sindicalismo combativo; uma
liderança impulsionada por setores da Igreja Católica e apoiada por
diversos setores da esquerda, apesar da prematura vocação anticomunista e
antissocialista; uma liderança transformada em mito por setores
politizados e intelectualizados das classes médias e idolatrada pelas
massas populares; uma liderança que chegou ao governo federal em aliança
com a direita oligárquica tradicional e que, desde então, utiliza todos os
tipos de malabarismos para garantir o apoio eleitoral dos mais pobres e
dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, assegurar aos grandes grupos
econômicos (bancos, agronegócios, empreiteiras) os maiores lucros da
história do capitalismo brasileiro.

Loteamento do poder

Justamente por desprezar a principal contradição do sistema (trabalho
versus capital) e a existência de doutrina ou programa, por fundamentar-se
basicamente no imediatismo e no pragmatismo primitivo, o lulismo atraiu
durante anos os mais diferentes segmentos e grupos sociais, ao ponto de se
constituir num aglomerado de interesses dispersos, que mistura negócios
privados com o Estado, tráfico de cargos, privilégios e benesses com os
recursos dos cofres públicos.

Entraram nesse balaio desde os especuladores financeiros que mamam nos
juros da dívida pública, os grandes grupos do PAC e beneficiários do
BNDES, as PPPs das corporações e organizações sociais, até a base da
pirâmide amparada por Bolsa Família, Prouni, Fies e Pronatec.

Para manter esse conglomerado difuso como instrumento de poder, o lulismo
tratou de articular no Congresso Nacional uma base parlamentar fisiológica
[1] cada vez mais gananciosa, e cada vez mais de direita (neoliberal e
conservadora), sustentada com pixulecos [2] variados, desde o mensalão,
loteamento de ministérios e de cargos, verbas para parlamentares e a
permanente troca de favores.

Nas eleições de 2014, precisou ampliar de tal forma o leque de seu
esquema de sustentação que acabou por carrear ao Congresso Nacional um
contingente expressivo de parlamentares manietados pelos lobbies mais
nefastos do país, como o do agrotóxico, do fumo, das montadoras,
ruralistas, fundamentalistas evangélicos e as bancadas da bola e da bala.

Se já era uma composição fisiológica sem qualquer compromisso
programático, o lulismo ficou assentado num terreno ainda mais pantanoso,
com estelionatários e reacionários de toda ordem. Em momento de crise
econômica, ao contrário do que ocorreu nos seus dois primeiros mandatos,
as alianças se esgarçaram ao mesmo tempo em que os setores médios e
populares, protegidos por programas sociais em anos anteriores, retornaram
à instabilidade histórica e à vulnerabilidade causada pelo aumento da
inflação e do desemprego, e especialmente pela escassez de recursos nos
cofres públicos para as "políticas compensatórias" do capitalismo.

O quadro de crise geral econômica e política, seriamente agravado pelas
denúncias de corrupção na Petrobras e pelos processos da Operação Lava
Jato, consumiu rapidamente a popularidade do governo Dilma Rousseff,
enfraqueceu o PT e colocou em xeque o futuro do lulismo, na medida em que
seus esquemas de sustentação estão sendo pulverizados pelas instituições
do Estado (Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário), pela mídia
burguesa, pelos setores médios e pela estrutura partidária tradicional,
dentro e fora de seu amplo e multifacetado arco de alianças, a começar da
dobradinha com o PMDB.

Coerência na ação

Na medida em que derrete em praça pública, o lulismo tem boa parte da sua
base social capturada pelos setores mais conservadores da luta política,
que levantam as bandeiras da oposição, da crítica ao governo e do "combate
à corrupção". As forças sociais do eterno governismo entram em estado de
letargia oportunista à espera do que vai acontecer. E as forças sociais do
campo da esquerda que ainda tentam conter a derrocada do lulismo são
arrastadas para o centro do pântano, perdem espaço na sociedade e se
isolam dos pobres e dos trabalhadores, exatamente porque empunham
bandeiras desprovidas de significado e coerência.

Afinal, por que os movimentos sociais populares e dos trabalhadores
seriam contra o impeachment de uma presidente que mentiu na campanha
eleitoral e que adotou o programa neoliberal defendido pela direita? Por
que o movimento social dos trabalhadores e das esquerdas necessita ser
omisso, silencioso ou mesmo conivente com os esquemas de corrupção? Por
que os pobres e os trabalhadores precisam dar respaldo político a um
governo loteado com os partidos tradicionais das classes dominantes? Por
que apoiar um governo que não se empenha na reforma agrária, na construção
de moradias e muito menos no investimento real dos serviços públicos de
transportes, saúde e educação?

As forças políticas autenticamente de esquerda não podem ser reféns do
"culto à personalidade" de uma liderança popular com trajetória
direcionada para a direita. Assim como não podem ser reféns de um governo
estruturado pelo lulismo para ser o gestor mais cômodo ao capital, aquele
que trata de pacificar as massas trabalhadoras enquanto as grandes
corporações abocanham sem nenhum constrangimento a maior parte dos
recursos públicos.

Os partidos e movimentos sociais populares de esquerda só serão
respeitados pelos trabalhadores e pelo povo brasileiro quando se livrarem
da influência do lulismo, quando criticarem abertamente as práticas
adotadas pelo conglomerado lulista, quando, enfim, cessarem de vez com o
endeusamento de uma liderança que abandonou há muito tempo o seu
compromisso com a classe trabalhadora.

O futuro sem lulismo é restauração e renovação do protagonismo coletivo
dos que apostam na verdadeira transformação social.


29/Fevereiro/2016

[1] Designa alianças sem princípios
[2] Subornos

[*] Jornalista e professor.

Para informação em tempo real acerca da detenção do Sr. Lula ver
https://www.facebook.com/jornalistaslivres/

O original encontra-se em www.correiocidadania.com.br/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

In
Resistir.info

http://resistir.info/brasil/lulismo_29fev16.html#asterisco
29/2/2016

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