segunda-feira, 21 de março de 2016

‘Um processo de direitização significa imposição do medo à maioria da população’




Virgínia Fontes

Entrevista concedida a Cátia Guimarães – EPSJV/Fiocruz


A historiadora Virgínia Fontes é coordenadora do Programa de Pós-graduação da
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, e professora da
Universidade Federal Fluminense. Respondendo a três perguntas de análise de
conjuntura do Portal EPSJV, ela identifica tanto causas econômicas quanto
movimento de autopreservação nas posições que o grande empresariado e partidos
da oposição têm assumido na crise política.

No esforço de entender o cenário atual, que leitura você faz do que está
acontecendo no país?

O que está acontecendo é um processo muito complexo e que não é linear. Vamos
pegar os principais elementos. Nós temos uma crise econômica, portanto uma baixa
da taxa de lucro. Crises econômicas são normais na sociedade capitalista.
Estamos diante de uma crise capitalista que tem relação com a burguesia
brasileira mas ela não justifica alguma coisa do que está acontecendo aqui. O
segundo ponto importante de se levar em conta é que provavelmente existe uma
briga interburguesa, embora na imprensa burguesa mais direta isso não apareça.
Alguns leram essa briga interburguesa como sendo a oposição entre burguesia
industrial e financeira ou uma burguesia mais brasileira contra a imperialista.
Eu não concordo. Provavelmente a briga que está acontecendo agora é o que eu
chamaria de briga de cachorro grande. Desde os governos Fernando Henrique e
continuando nos governos Lula, houve impulso e apoio para concentração e
centralização do capital no Brasil. Com as privatizações do governo Fernando
Henrique, com a legislação para exportação de capitais do governo Fernando
Henrique e depois com a atuação do BNDES para montar as campeãs nacionais no
governo Lula. É preciso lembrar que o BNDES no governo FHC também financiou a
privatização com moeda podre. Portanto, nós temos órgãos de Estado agindo no
sentido de consolidar burguesias de alta potência desde o início dos anos 1990.
Estimular concentração e centralização do capital significa que esse capital
precisa se reproduzir para dentro e para fora. Essas empresas se converteram em
multibrasileiras. E, como acontece com as multi em qualquer lugar do mundo, isso
significa enfrentar tensões políticas para fora e ser capaz de acalmar para
dentro. O que está acontecendo no Brasil? Tudo indica que a tensão burguesa hoje
é de escala: massa de burguesia de menor escala, num momento de crise, briga com
as suas congêneres maiores. E briga pelo que tem de política pública. Não briga
contra a corrupção, ela quer um pedaço para ela. Porque o problema do Brasil não
é corrupção, o problema é o funcionamento regular do Estado, que é podre, porque
a burguesia está dentro do Estado. Tem que controlar a corrupção, mas ninguém
nunca vai controlar a corrupção se é a própria burguesia que determina o que a
política pública vai fazer. Portanto, essa briga de escala é bastante
silenciada, mas expressa uma série de outras tensões para as quais a gente não
está dando atenção.

Vamos pegar dois pontos. Quem hoje a Fiesp representa? A Fiesp saltou da posição
de suporte e participação no governo Dilma para a defesa do impeachment e da
renúncia. É a Fiesp ainda representante de todo o conjunto da burguesia
brasileira? Não sei. Não sabemos. Uma parcela dessa burguesia provavelmente não
está encontrando na Fiesp o seu ponto de sustentação. E eu ouso dizer que há uma
questão regional na disputa interburguesa entre o paulistocentrismo e as grandes
burguesias que foram se construindo no agro, na indústria e na mineração, e que
não necessariamente estão centradas só em São Paulo. Portanto, tensão interna da
burguesia tem. Essa burguesia toda se beneficiou dos governos Lula. Ora, montar
uma multi é abrir área de tensão com os aliados. É abrir brigas muito maiores
entre grandes empresas. É lidar como imperialista com os imperialistas. Mas não
há estofo na burguesia brasileira para sustentar isso em situação de crise.
Porque teria de sustentar duas coisas: o Estado como garantidor da política para
fora e o apaziguamento para dentro para que isso consiga acontecer. Nos últimos
cinco anos, se estreitou bastante o espaço para o aumento dessas novas multi
oriundas de países capitalistas mais recentes, como os BRICS. Portanto, a briga
de cachorro grande ficou sem sustentação interna. Marcelo Odebrecht foi o único
que pegou 19 anos na cadeia. Terceiro ponto de tensão nessa burguesia, e que eu
não acho irrelevante: eles estão com medo. Estão se debatendo, com medo de ser
presos. Aliás, eu acho que a frase da Fiesp é esclarecedora: “Não vamos pagar o
pato”. Ou seja, eles não vão para a cadeia, vai o resto do mundo inteiro, mas
eles não. É a frase mais transparente que eu já vi do tipo ‘nenhum burguês na
cadeia’. Ontem [a colunista] Monica Bergamo confirmou as minhas suspeitas.
Segundo ela, está todo mundo esperando que a aceleração no processo da Lava Jato
e um eventual término do governo Dilma, ao retirar do foco a questão que move a
operação, possa esfriar o processo da investigação. É exatamente isso. O que se
trata agora é de controlar, essa burguesia tem medo. Como fez Fernando Henrique
Cardoso controlando com o famoso engavetador-mor da República, o Geraldo
Brindeiro, que impediu todos os processos sobre a burguesia.

Como estão distribuídos os diferentes segmentos da sociedade nesse processo?

Todos esses que eu citei são pontos de tensão na burguesia. Não dá para dizer
que a classe trabalhadora está toda homogênea aí. Porque a atuação do PT foi de
segmentação, tanto para garantir a sustentação do próprio PT quanto quando abriu
a porteira para as políticas do grande capital. A classe trabalhadora foi
segmetada, perdeu capacidade convocatória, perdeu capacidade de mobilização
porque o PT não queria mobilizar. E colocou-se cada vez mais à disposição das
tensões internas da burguesia. Ora, o interesse do PT para o capital era sua
capacidade mobilizatória. Perdida essa capacidade, para que serve o PT? Mas pode
essa burguesia acabar com o povo brasileiro? Não, não pode. Ela vai precisar
achar outro percurso que justifique um apaziguamento qualquer para essas massas.
Quem vai ser a nova esquerda para o capital ninguém sabe porque o que está
aparecendo até agora é só uma direita endurecida, muito truculenta, constituída
de brancos de classe média que não representam a massa da população, mas que têm
tido uma presença exacerbada tanto na mídia quanto na rua e nas redes. Uma
direita completamente desequilibrada. O discurso que unifica tudo isso é o
anticomunismo, raivoso, agressivo, violento, absolutamente antidemocrático. Mas
não tem comunismo! Quem está fazendo comunismo aqui? O argumento é
paulistocêntrico, totalmente de São Paulo, que é a história dos petralhas. Como
se o PT condensasse nele próprio todas as características de todas as esquerdas
de todos os períodos históricos na existência. E como se ele tivesse feito esse
papel, que não fez. O que está acontecendo é uma sequência de golpes que eu
chamaria de golpes moles, gelatinosos, mas com muita mídia – a mídia participa
disso -, todos por dentro da institucionalidade. Qual é o papel de cada peão
nesse jogo? Eu falei de burguesia, falei de classe trabalhadora. Agora, que
partidos nós temos? Quais partidos são efetivamente nacionais, têm uma
implantação no território nacional inteiro? Só tem dois a meu juízo: PT e PMDB.
O PSDB se forma e se consolida como um partido paulista, no máximo em aliança –
e eventual porque não consegue emplacar alianças de longa duração – com algum
estado, fundamentalmente os estados tradicionais da riqueza no Brasil: Paraná,
Rio de janeiro, Minas Gerais, eventualmente um ou outro no Nordeste. Não é um
partido cujo desenho seja realmente de implantação nacional. Tentou surfar nessa
onda para se converter em partido nacional, mas não conseguiu. Agora ele se dá
conta de que qualquer governabilidade passa pelo PMDB. E, portanto, os
primos-irmãos PSDB/PT vão tender a fazer a mesma coisa, a não ser que o PSDB
agora aceite virar PMDB, voltar aos braços de onde nasceu. Do ponto de vista
partidário, a configuração é dramática. O PMDB está afundado até o pescoço; o
PSDB, nós sabemos que está, embora isso esteja oculto, mas na hora em que se
puxar a correia do PMDB, o PSDB vai, como foi o PT. De novo, eles têm que ter
medo. E eles estão querendo derrubar o governo rápido para brecar essa operação.
Vão botar alguma figuração bonitinha para o Sergio Moro, ele vai continuar com
uma bandeirinha prateada sacudindo na rua, fazendo algum estardalhaço, vai ter
direito a muita mídia, muito jantar, muito champanhe com empresário.

Quais são os riscos identificáveis hoje nessa conjuntura?

Estamos assistindo a uma redução brutal da capacidade popular de se expressar.
Vivemos a evidência da amputação que esse tempo de FHC mais governos Lula/Dilma
significou como perda de capacidade organizativa da classe por baixo. As
contradições não sumiram: a massa de trabalhadores é maior, as condições desses
trabalhadores são piores, portanto, os problemas vão aparecer e rápido. E não
tem ditadura militar que possa resolver esse tipo de problema. Portanto, as
tensões todas estão presentes. A gente não tem partidos capazes de dar conta da
expressão dessas tensões. O PSDB está rachado em São Paulo. Estamos diante do
risco de uma redução significativa de direitos, que já está acontecendo; a
consolidação de uma força de direita, ao mesmo tempo institucionalizada e
não-institucionalizada, que não é exatamente partidária, porque não cola só com
os partidos. É como se você tivesse a revista Veja perambulando pela rua:
racismo, sexismo, discriminação social pesada, como elemento norteador das
formas sociais. Isso é dramático porque é muito amedrontador num país já povoado
de milícias e de uma polícia completamente truculenta. Isso significa que
milícias passam a ter uma configuração ainda mais subordinada à grande
propriedade e ainda menos subordinada a qualquer elemento de legislação. Esse é
um processo de direitização que não é só político, é também social. Um processo
de direitização significa imposição do medo à maioria da população, quer seja
pela violência, pela perda de emprego, quer seja simplesmente pela
desqualificação da sua presença num lugar não desejado. Eu acho que os riscos
são altos. Se é verdade que a democracia é algo muito limitado — porque procura
esvaziar a vida social dos conflitos, trazendo todos para o terreno da
representação —, ao menos esse espaço para conflitos, teoricamente, ela abriria.
E, portanto, por esse espaço, você teria como aglutinar forças. Se isso é agora
eliminado pelo judiciário, pela mídia e por uma espécie de conjugação de
partidos que capturam, eliminam e invertem a expressão real do voto, isso
significa que os espaços estão fechados. É uma ditadura? Institucionalmente,
não. Na prática, é uma ditadura do capital de forma muito brutal. Isso não
significa que as contradições estejam controladas, portanto essas lutas vão
aparecer, mas agora vão ter que se defrontar com uma direita que ganhou espaço,
ganhou fôlego, ganhou gordura nesses últimos tempos. Só participando desse
processo de enfrentamento é que a gente vai poder saber.

In
PCB
http://pcb.org.br/portal2/10663
19/3/2016

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