sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

A revolução esquecida de 1383

   
       por António Santos 



       Neste dia, no ano de 1383, começava em Lisboa a primeira revolução
      burguesa do mundo. Revolução, pela mesma razão que ninguém ousaria chamar
      "interregno" à Revolução Francesa nem "crise" ao 25 de Abril. Burguesa,
      porque, ainda que pavorosa aos próprios netos, inaugurou definitivamente o
      poder dos "homens honrados pela fazenda". E, à semelhança da revolução
      francesa ou do 25 de Abril, a revolução portuguesa de 1383-1385 também foi
       condenada ao olvido e à mentira – com a diferença, no entanto, de mais
      séculos de avanço.
       Há 633 anos, a regente Leonor Teles, numa fuga desesperada para Alenquer,
      prometia esmagar a Revolução queimando Lisboa com "mau fogo", ará-la a
      carros de bois e encher tonéis com as línguas das mulheres
      revolucionárias. A redoma de silêncio que cobriu a Revolução quase faz
      crer que se cumpriu o vaticínio de Leonor. Porque se calaram as vozes de
      1383? Quem mandou cortar as línguas dos sublevados de Lisboa?
       Compreende-se o desconforto que a Revolução inspira na actual classe
      dominante: a geração de Soares dos Santos, Américo Amorim e Ricardo
      Salgado tem mais em comum com os senhores feudais parasitários que, em
      1383 se passaram para o lado de Castela do que com a burguesia
      revolucionária de Álvaro Pais, Gil Fernandes e Álvaro Coitado,
      construtores conscientes do capitalismo embrionário a que Fernão Lopes
      chama a Sétima Idade do Mundo "na qual se levantou outro mundo novo e nova
      geração de gentes, porque filhos de homens de tão baixa condição".
       Mas o ódio de morte que, ainda hoje, o capital tem à Revolução de
      1383-1385 é mais profundo que a degradação histórica de uma burguesia
      avinagrada pelos séculos. O que mais assusta os novos senhores das novas
      glebas é esta inegável verdade histórica: a primeira revolução burguesa do
      mundo não foi feita pela burguesia, mas pelos trabalhadores. Sob a
      liderança de ricos mercadores e "homens de cabedal", quem derrubou a velha
      ordem foram os miseráveis cabaneiros e a "malta das vinhas" sem terra nem
       pão; foram os braceiros, cabreiros e ovelheiros enlouquecidos pela fome;
       foram os menestrais das cidades em luta contra os salários tabelados;
       foram os mancebos e pastores indignados com a Lei das Sesmarias. Foram,
      como escreve Fernão Lopes, os "ventres ao sol".
       Mesmo passados seis séculos, os poderosos ainda engolem em seco ao
       recordar as imagens de Martinho, Bispo de Lisboa, a voar da torre da Sé e
      devorado pelos cães; do fidalgo Nuno Rodrigues de Vasconcelos, morto por
      mulheres lideradas por Margarida Anes, uma humilde adeleira; do senhor Pai
       Rodrigues, perseguido por fojos e brenhas por centenas de populares; do
      triste fim da Abadessa de Évora, nua no meio da praça, a suplicar pela
       vida aos antigos servos… De Norte a Sul, o povo respondia com formidável
      violência ao quotidiano das violências dos seus senhores: o trabalho até à
      inanição, as agulhas de albardeiro espetadas nas línguas dos que
      protestassem; os açoites no pelourinho por dá cá aquela palha; os
      infinitos serviços pessoais obrigatórios; a polé para os que fugiam à
      servidão.

      Fernão Lopes escreveu que "Castela era contra Portugal e Portugal contra
      si mesmo", ou seja, estamos diante de uma revolução social que desencadeia
      uma intervenção militar externa. Contudo, muitos historiadores não
      quiseram nunca ver este "Portugal contra si mesmo", preferindo apresentar
      uma nação monolítica unida contra o inimigo castelhano. De acordo com esta
      a perspectiva idealista, na raiz da "crise sucessória" estão as
       circunstâncias da morte de D. Fernando. Já velho, sem descendência e
      tísico, o filho de D. Pedro, o Cru, é seduzido por uma mulher casada, de
      origem nobre, cujos "cabelos ruivos parecia que ardiam" e cuja beleza só
      era ultrapassada pela inteligência: D. Leonor Teles. Deste casamento,
      feito às escondidas em Leça da Palmeira enquanto a nova Rainha mandava
      matar quem protestava, nascerá uma única criança: Beatriz, logo prometida
      a D. Juan, rei de Castela, nos tratados de Salvaterra de Magos. Teria sido
      esta estúpida decisão que desencadeou a revolução. Nada mais equivocado.
       Álvaro Cunhal, porventura o primeiro a compreender a Revolução de 1383, é
      taxativo: "Os historiadores burgueses têm apresentado sempre o casamento
      da filha única de D. Fernando com o rei de Castela, em 1383, como "erro"
      de um rei inconstante e imprevidente. A verdade é ter sido tal casamento
      uma manobra política da nobreza, manobra maduramente reflectida e de
      efeitos cuidadosamente previstos e desejados. (…) Sentindo o terreno a
      fugir-lhe debaixo dos pés, incapaz de suster com os seus recursos próprios
       o movimento revolucionário ascendente, a nobreza procura deliberadamente
       a entrada em acção contra a revolução ascendente, do aparelho militar da
      aristocracia territorial de além fronteiras. Nessa sua política, a nobreza
      de então seguiu o caminho que sempre têm seguido as classes dominantes
      quando sentem em perigo a sua existência. Ante a ameaça de serem
      desapossadas dos seus privilégios as classes parasitárias preferiram
      sempre a uma vitória das forças nacionais progressivas, a dominação do seu
      país por um estado estrangeiro que abafe a revolução e lhes mantenha esses
      privilégios".
       Com efeito, a Revolução de 1383, como qualquer revolução, não foi
      concebida por acidente. É o resultado da pressão que, ao longo de toda a
      primeira dinastia, as classes laboriosas e a burguesia exerciam junto do
      poder central para aliviar a canga do feudalismo. A sociedade portuguesa
      vinha prenhe de revolução há séculos, só ainda ninguém tinha dado por
      isso. E ainda assim, durante todo o reinado de D. Fernando, a nova
      sociedade fremia, no ventre da antiga.


      O Portugal do séc. XIV é uma enorme gafaria de todas as pestes onde não
      entra a luz. É a idade do sebo humano em todas as coisas. É o tempo da
      magia e da superstição. Trata-se a dores de dentes com esterco de porco,
      leite de cadela, fígado de doninha, carne de cobra cozida depois de muito
      vergastada, raiz de aipo trazida ao pescoço, grão de sal envolvido numa
      teia de aranha… A sabedoria clássica é um vulto acoitado nas mourarias.
      Sucedem-se as ondas de loucura e de fome, cada uma pior que a anterior até
      se comer a sementeira e todos os animais e a hipoteca do futuro. É o fim
      do mundo que vem de Oriente nas patas de Tamerlão. Mas este é também o
      tempo de sonhos maiores que a vida, que vêem além de todas as fronteiras
      históricas. De Inglaterra chegam camponeses refugiados do exército
      camponês de Wat Tyler, que organizaram greves, puseram cerco à Torre de
      Londres e recitam de memória passagens de Jonh Ball "Quando Adão cavava e
      Eva fiava, quem era então o Senhor? Desde o início dos tempos todos os
      Homens foram criados iguais, e a nossa opressão e servidão veio pela
       opressão injusta de homens maus (…) Por isso exorto-vos! Chegou o tempo
      de sacudir o jugo da servidão e recuperar a liberdade". De França chegam
      ainda os rumores da Grande Jacquerie: com o Palais Royale cercado por
      dezenas de milhares de pobres; o rei a enfiar na tola o chapéu vermelho e
      azul dos revoltosos para pisgar-se disfarçado; Guillaume Cale traído e
      coroado "rei dos pobres" com uma coroa em brasa.

      
      Este é também o tempo de todas as heresias. Begardos, beguinos,
       fraticelli, lolardos, cátaros, adamitas, taboritas, orebitas ou
       utraquistas, já vão sendo relaxados por apóstatas ou replaspos,
      cismáticos ou nefandos. E todos ardem da mesma forma no fogo do Senhor.
       No contexto da Guerra dos Cem Anos, cada partido e cada classe escolhe o
      cisma que mais convém: a nobreza ultra-montana alinha com o anti-papa de
       Avinhão Clemente VII. A grande burguesia portuguesa alia-se aos seus
       principais parceiros comerciais: flamencos, prazentins e ingleses do papa
       Urbano VI.
       Burgueses que arroteiam uma courela e servos que a trabalham sobrevivem
      ambos apertados numa tenaz de humilhações, impostos e obrigações de todas
      as talhes e feições: são açougagens e brancagens, ajudadeiras e
      fossadeiras, mealharias e anadarias, montados e mordomados, foragens e
      portagens, jeiras e corveias, tostões e capitações, jugadas e talhadas,
      salaios, lombos, dízimos, alcavalas, censos, relegos, anudúvas,
      banalidades… É caso para se perguntar: ó terra jugadeira, ó terra
       reguengueira, quanto do teu sal é suor dos servos de Portugal?

      
      Contra este mundo, a 6 de Dezembro de 1383, enquanto o complô burguês
      liquida o conde Andeiro nos passos da rainha, Álvaro Pais cavalga pela
      cidade aos brados, "Acorramos ao Mestre, amigos! Acorramos ao Mestre, ca
      filho é d'el-rei D. Pedro!". Do povo de Lisboa, a burguesia não pretendia
      mais que a legitimação do assassinato para depois encontrar uma solução
      moderada: casar o mestre com a rainha ou simplesmente esperar pela
      libertação de João de Portugal. Este filho de D. Pedro gozava de uma
      imensa popularidade e surgia como a alternativa óbvia ao rei de Castela
      mas estava a ferros em Castela desde que Leonor o convencera a matar a
       própria esposa e sua própria irmã, Maria Teles, prometendo-lhe a mão de
      D. Beatriz. Mas, consumado o crime, foi denunciado por D. Leonor e
      obrigado a fugir para Castela, onde acaba agrilhoado. Leonor vencera outra
      vez.
       Mas o povo de Lisboa, mesmo que já houvesse rádios para mandá-lo ficar em
      casa, não se satisfaz com os planos da burguesia e força-a a transformar o
      golpe de Estado numa Revolução, forçando depois os homens bons a assumi-la
      e levá-la até às últimas consequências. É o povo que impede o Mestre de
      fugir para Inglaterra. É o povo que aclama o Mestre. É o povo que mata o
      alto burguês Álvaro da Veiga que, com medo das repercussões, se recusa a
      sair à rua para aclamar o Mestre. É o tanoeiro Afonso Eanes Penedo que,
      quando os burgueses têm medo de assumir a revolução desembainha a espada
      "Que estaes vós outros assim cuidando, e que não outorgaes o que
      outorgaram quantos aqui estão? E como? ainda vós duvidaes de tomar o
      Mestre por regedor destes reinos, e que tome cargo de defender esta cidade
      e a vós outros todos? Parece que não sois vós outros verdadeiros
      portuguezes! (…) Eu em esta cousa não tenho mais aventurado que esta
      garganta, e quem esto não ha mister que o pague pela sua, ante que d'aqui
      parta." Ou seja, aqueles que não têm mais nada a perder que a garganta,
       descobrem que só assim, com lâminas contra gargantas, é que se convencem
      aqueles que tudo têm a perder".
       Os trabalhadores sabiam que perdendo a aposta acabariam como acabam
      sempre os camponeses das revoltas falhadas: enforcados pelos chaparros até
      ao Algarve. É daí que vem a coragem de Aljubarrota e a ferocidade com que
      se perseguem os grandes fidalgos "e os meudos corriam apoz elles e
       buscavam-nos e prendiam-nos tão de vontade que parecia que lidavam pela
       fé". Como um rastilho, a revolução incendeia a terra. Por todas as partes
      ouvem-se palavras de ordem de "Arraial! Arraial! Mestre de Avis, Rei de
      Portugal"

      Álvaro Pais, cérebro da Revolução, cedo compreende o que tem nas mãos,
      como demonstra o profético conselho que dá ao Mestre: "senhor, fazee per
      esa guisa: daae aquello que vosso nom he, e prometee o que nom teemdes, e
      perdoaae a quem vos nom errou". A revolução distribui entre burgueses,
      mesteirais e camponeses a terra dos senhores feudais (daae aquello que
      vosso nom he), promete uma sociedade completamente nova (prometee o que
      nom teemdes) e indulta todos os que queiram combater do seu lado (perdoaae
      a quem vos nom errou).
       Mas o povo vai mais longe e, nalgumas partes do país, não espera pela
      revolução burguesa. Em Évora, o povo, liderado por Gonçalo Eanes,
      cabreiro, e Vicente Anes, alfaiate, massacra a nobreza e expulsa a
      burguesia sob o pretexto de obrigá-los a ir para Lisboa ajudar o Mestre.
      Quando o conde de Viana tenta "tomar mantimentos contra a vontade dos seus
      donos (…) juntaram-se contra ele os das aldeias e comarcas de redor.
      Emborilando-se eles com eles remessaram-lhe o cavalo e caiu com ele em
      terra; e foi um vilão rijamente que chamavam de alcunha Caspirre e
      cortou-lhe a cabeça e assim morreu". No Montenegro (Chaves) improvisa-se
      uma reforma agrária; em Rio de Onor o povo organiza-se numa comuna; nas
      Corvelinas institui-se que ali só entram trabalhadores; Em Elvas, os
      fidalgos entrincheirados no castelo fazem sair um camponês com as mãos
      decepadas ao pescoço. Em resposta, os revolucionários fazem o mesmo a dois
      fidalgos. Por todo o Alentejo a insurreição popular vai ganhando contornos
      de Jacquerie até o próprio Nuno Álvares Cabral ter de intervir
       militarmente e mostrar aos camponeses que ainda terão de esperar mais
       seiscentos anos. Ainda assim, quem disse que o povo é sereno não sabe
      quem foi Caspirre.
       Desesperado, resta ao caquéctico Portugal feudal pedir ajuda a Castela,
       que entra pela Guarda aglutinando a alta nobreza portuguesa. Ficam
       temporariamente esquecidas as Guerras Fernandinas: esta é uma guerra de
       classe. A própria Leonor, contrariada, entrega o regimento ao rei de
       Castela, danando assim os Tratados de Salvaterra. Mas a Aleivosa tem uma
       última carta na manga: casar-se com Pedro de Trastamara (primo do rei de
       Castela), convencê-lo a matar o rei, fugir para Coimbra e governar
       Castela e Portugal. O plano, contudo, é descoberto e Leonor irá passar os
      seus últimos dias presa num convento em Tordesilhas.
       A guerra intensifica-se. Lisboa é cercada duas vezes, uma das quais
       durante cinco meses sujeitando a cidade a uma brutal poliorcética de fome
      e terror. Mas o povo não cede. Na Batalha dos Atoleiros, em Abril de 84,
      as forças portuguesas, com apenas 1500 homens, derrubam um exército
      espanhol nutrido de 5000 soldados sem sofrer uma única baixa. No ano
      seguinte, Aljubarrota dará o golpe final.

      
      Conta Fernão Lopes que "n'aquelle tempo Arraia meuda, os grandes
       escarnendo dos pequenos chamando-lhe povo do Messias de Lisboa que
      cuidavam que os haviam de remir da sujeição d'el-rei de Castella. Os
      pequenos aos grandes depois que cobraram coração, que se juntavam todos em
       um, chamavam-Ihe traidores scismaticos que tinham da parte dos castellãos
      por darem o reino a cujo não era. E nenhum por grande que fosse era ouzado
      de contradizer a estos nem falar por si nenhuma cousa, por que sabia que
      como falasse morte má tinha logo prestes, sem nenhum mais puder ser bom. E
      era maravilha de ver que tanto esforço dava Deus n'elles, e tanta
      cuvardice nos outros que os castellos que os antigos reis por longos
      tempos, jazendo sobre elles com força de armas, não podiam tomar, os povos
      meudos, mal armados e sem capitão, com os ventres ao sol, ante de meio dia
      os filhavam por força".
       Voltemos a Lisboa, há tantos meses cercada pelas tropas de Castela que já
      não se sabe se ainda lá dentro há vivos. Então, do castelo de Palmela, os
      revolucionários acendem uma fogueira tão grande que pudesse ser vista
      pelos resistentes de Lisboa. É o povo que, em delírios de fome e aos
      gritos pelas ruelas, diz ver as chamas na lonjura. É o povo que, só vivo
      de comer cadáveres, e ervas daninhas, sobe ao castelo e São Jorge e, em
       resposta, acende outro fogo tão alto e luminoso que não chega só a
      Palmela lá na outra banda, mas tão imenso que, hoje mesmo e tantos anos
      depois, olhando da perspectiva certa pode-se ver como ainda arde.

      08/Dezembro/2016
       Bibliografia: 
       Lopes, Fernão - Crónica de D. João I
       Cunhal, Álvaro - As Lutas de Classes em Portugal nos fins da Idade Média,
       Borges Coelho, António - A Revolução de 1383
       Cortesão, Jaime - Os factores demográficos na formação de Portugal
       Ilustração principal: 
       Bep Boatella - What happened in the "Grande Jacquerie"
       Outras pinturas: 
       Álvaro Cunhal - Óleo sobre tela
       Jaime Martins Barata - Fresco no Palácio de Justiça de Fronteira
       Jean Wavrin - Crónica de Inglaterra 
       Ver também em resistir.info:
        A Revolução de 1383-85 , pelo General Vasco Gonçalves
       O original encontra-se em 
      https://manifesto74.blogspot.pt/2016/12/a-revolucao-esquecida-de-1383.html
      
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/portugal/revolucao_de_1383.html
8/12/2016

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