sábado, 3 de dezembro de 2016

Luto de 9 dias em Cuba é para valer



"O luto de nove dias pela morte do 'comandante', como Fidel Castro é chamado
aqui, é levado a sério e não se limita a bandeiras a meio pau. Casas noturnas
não funcionam, o tradicional Floridita está fechado, assim como o balcão da
Bodeguita onde litros de mojito são vendidos por minuto. Os turistas estão
assistindo a um momento histórico, mas não sentem Havana exatamente como ela é",
que escreve de Havana, sobre a comoção gerada pela morte de Fidel Castro

Por Hélio Doyle, de Havana


Quem conhece Havana sabe que a capital de Cuba é uma cidade alegre. Há sempre o
som de alguma música por onde se caminha. Vem das casas, dos bares e
restaurantes, dos músicos de rua. Os cubanos, geralmente expansivos, falam em
voz alta. Pois Havana, desde sábado e até este domingo, é uma cidade sem música
e de pessoas comedidas nas falas e nos gestos.
O luto de nove dias pela morte do "comandante", como Fidel Castro é chamado
aqui, é levado a sério e não se limita a bandeiras a meio pau. Casas noturnas
não funcionam, o tradicional Floridita está fechado, assim como o balcão da
Bodeguita onde litros de mojito são vendidos por minuto. Os turistas estão
assistindo a um momento histórico, mas não sentem Havana exatamente como ela é.
Na terça-feira muitos habaneros foram dormir já na madrugada, pois o enorme ato
em homenagem a Fidel na Plaza de la Revolución acabou tarde. Na quarta-feira,
muitos acordaram bem cedo para ver passar o cortejo que saiu às 7h do Ministério
das Forças Armadas levando as cinzas de Fidel rumo a Santiago de Cuba, a segunda
cidade mais populosa, a quase mil quilômetros de distância. Amanhã haverá outro
grande ato em homenagem a Fidel, em Santiago, e no domingo as cinzas serão
depositadas no cemitério da cidade. Aí acaba o luto.
As avenidas de Havana pelas quais passou o cortejo estavam cheias desde 5h da
madrugada. Por todo o percurso a caminho de Santiago, nesses dois dias,
repetiram-se as cenas vistas na capital: gente de todas as idades, muitos com
bandeiras. Há visível emoção quando passa o jipe levando a urna coberta com o
pavilhão cubano. Muitos choram. aberta ou discretamente, especialmente os mais
velhos, que viveram os tempos de luta contra a ditadura de Batista e os
primeiros anos do governo revolucionário. Mas praticamente todos aplaudem,
gritando "Fidel", "todos somos Fidel" e "yo soy Fidel".
Passado o féretro pelas avenidas de Havana, na quarta-feira, a multidão se
dissolveu, rumo a suas rotinas. A cidade, que desde sábado parecia viver um
feriado prolongado, com enorme fila para homenagear Fidel no monumento ao herói
nacional José Martí e as ruas quase vazias, voltou a ter movimento. Mas sem
música.
Nem paraíso nem inferno
Não se pode, é óbvio, falar em unanimidade de sentimentos. Há cubanos,
especialmente mais jovens, indiferentes à morte de Fidel. Há os que comemoram
bem discretamente, e não por medo de serem reprimidos -- pois são conhecidos
oposicionistas que vivem em Cuba -- mas para não desafiar ou provocar a grande
maioria que, de alguma maneira, literal ou figurada, mais intensamente ou menos,
chora por Fidel.
Uma boa definição de Cuba é de que está longe de ser o paraíso cantado por
alguns, mas não é o inferno visto por outros. É um país com alto índice de
desenvolvimento humano, reconhecidas conquistas na saúde, na educação e na
proteção social, sem miseráveis e moradores de rua. Mas é um país pobre e com
imensas carências em inúmeras áreas, consequência de erros políticos e
econômicos cometidos ao longo dos anos mas, em grande parte, causadas pelo
bloqueio econômico decretado pelos Estados Unidos em 1962.
Se Cuba fosse o inferno que pintam, o sistema e o governo não teriam sobrevivido
ao fim da União Soviética, à crise econômica que nos anos 1990 levou a uma queda
de 35% no PIB e de 75% no comércio exterior e às ofensivas patrocinadas pelos
Estados Unidos para desestabilizar o regime. E o governo não se arriscaria a
promover nove dias de eventos fúnebres, com as cinzas de Fidel cruzando o país e
juntando multidões que poderiam se animar a demonstrar suas insatisfações e se
revoltar.
O que protege a "Revolução", que é como se designa o regime, é sua base social
ampla. Fidel foi fundamental para formá-la e mantê-la por 57 anos, mesmo
formalmente fora do poder. Há muitas explicações, ideológicas e pragmáticas,
para a existência dessa base. Desde a incorporação cultural do pensamento
socialista até o temor que muitos têm de perder conquistas caso volte o
capitalismo -- entre as quais os sistemas gratuitos de saúde e educação ou as
propriedades desapropriadas dos que foram para Miami. Mas há muitas outras
razões, como o método de direção de Fidel, substancialmente diferente do que
existia na União Soviética e em países da Europa Oriental.
Parece paradoxal então que a população esteja insatisfeita, de alguma forma e em
diferentes graus, e não deixe de expressar suas críticas. A questão, geralmente
ignorada pelos que não entendem Cuba, é que a maioria dos insatisfeitos quer o
aperfeiçoamento do sistema e melhores condições de vida, mas não sua queda, seu
fim. Entre eles, muitos jovens que, mesmo críticos, não hesitam em se manifestar
em defesa do sistema, mas pregando mudanças. E há, claro, os oposicionistas que
sonham com a derrubada do regime e a volta do capitalismo.
Esses últimos, em Cuba, não passam de 10% da população, e há fundamentos para
demonstrar isso, entre os quais os votos nulos e brancos nas eleições. No
sistema de voto distrital vigente os verdadeiramente oposicionistas não
conseguem sequer eleger um vereador, e já tentaram. Seus líderes não passam nem
pelas assembleias, abertas a todos os moradores do distrito, para escolher os
candidatos.
A força da oposição está no exterior, especialmente na Flórida. De lá, porém, o
máximo que os oposicionistas podem fazer é influir na política dos Estados
Unidos em relação a Cuba. O que mantém o bloqueio econômico e prejudica a
economia cubana, mas não é suficiente para derrubar o governo.
Nesse aspecto, Fidel pode descansar em paz. Os dirigentes cubanos planejam tudo
minuciosamente, por isso puderam anunciar toda a programação dos nove dias de
luto poucas horas depois da morte. Assim como planejaram a sucessão do
comandante, já têm os detalhes da sucessão de Raúl Castro em 2018. Agora, porém,
terão de levar em conta o novo e ainda obscuro cenário traçado pela eleição de
Donald Trump.
Fidel sobreviveu no poder a 11 presidentes dos Estados Unidos, mas Raúl terá de
enfrentar Trump, no momento em que os cubanos pedem mudanças no país, sem o
apoio do irmão.
In
BRASIL247
http://www.brasil247.com/pt/247/mundo/268615/Luto-de-9-dias-em-Cuba-é-para-valer.htm
3/12/2016

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