segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Chamemos a coisa pelo nome: pilhagem, rapinagem, espoliação!



 
Por Felipe Brito.



Não é de se estranhar que Temer, Cunha, Jucá, Padilha, Geddel e Moreira Franco,
portadores de extraordinárias habilidades para maquinações parlamentares
(aplicadas, por exemplo, no recente episódio do impeachment desprovido de crime
de responsabilidade) privilegiariam “rotas alternativas” para inviabilizar (na
prática) a legislação trabalhista. Por mais elevadas que sejam as dosagens de
automatismo na inserção e reprodução sociais, efeito colateral típico de um
modelo de produção baseado na acumulação monetária insaciável, no predomínio da
abstração econômica (real) sobre a vida, não se ataca a legislação trabalhista
sem ônus político. Encontrar subterfúgios para diminuir esse ônus é parte
constitutiva da tarefa de esvaziar a regulamentação dos direitos trabalhistas.
Tais “rotas alternativas”/subterfúgios estão condensados em duas medidas: as
aprovações legislativas da terceirização irrestrita (ou seja, da possibilidade
de empresas estenderem a terceirização também para as chamadas “atividades-fim”)
bem como da prevalência de conteúdo “negociado” (por meio de convenções ditas
“coletivas”) sobre o legislado. Aprovadas tais medidas, a tendência à
desregulamentação, precarização, rotatividade será galvanizada e receberá
suporte legal, institucional, e, com isso, a correia de transmissão entre
trabalho formalizado, assalariamento e direitos trabalhistas, a rigor
cambaleante desde sempre no Brasil, estará sustada. No fundo, encontra-se a
secular obsessão de elite com o rebaixamento dos custos de produção e reprodução
da força de trabalho no Brasil, tão enraizada que, no primeiro encontro oficial
de banqueiros com o presidente Michel Temer, a pauta foi exatamente a
“flexibilização” da legislação trabalhista. O termo “flexibilização”, a
propósito, consagrou-se como um eufemismo para caracterizar medidas de
deterioração ou destruição de direitos. Conforme noticiado pelo jornal Valor
Econômico:

o que nem todo mundo sabe é que na pauta de alguns dos principais bancos
brasileiros não está a taxa de juro elevada, que ainda hoje é vista por algumas
alas, especialmente à esquerda, como benéfica à banca. Um dos assuntos que mais
têm dado dor de cabeça às instituições financeiras é o trabalhista […]. Cansados
de brigar nos tribunais, as instituições financeiras passaram a trabalhar
ativamente na proposição de mudanças na legislação atual. Com o crescimento da
taxa de desemprego nacional para 11,3%, alcançando 12,2% em São Paulo, onde
estão sediadas algumas das maiores instituições, imagina -­se que seja mais
fácil aprovar uma reforma. A terceirização, prevista no Projeto de Lei 4.330,
aprovado em abril do ano passado na Câmara dos Deputados e em tramitação no
Senado, é uma das bandeiras dos bancos. Outra é a permissão para que acordos
definidos em convenção prevaleçam sobre a legislação[1].
Tratando de “rotas alternativas”, um “atalho” super conveniente “caiu como uma
luva” para Temer e seus sustentáculos: a antecipação dos caminhos da
contra-reforma trabalhista por ninguém menos que o Poder Judiciário, nas suas
mais altas instâncias – STF (Supremo Tribunal Federal) e TST (Tribunal Superior
do Trabalho). Na verdade, uma espécie de “divisão do trabalho” entre os Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário (tácita, resultante de imediata afinidade
conservadora e de classe, mas também calculada, em grande medida). Declarações
públicas do Ministro Gilmar Mendes em um Seminário sobre “soluções para a
infraestrutura no Brasil” são emblemáticas: com a típica desenvoltura
“militante”, arrancou regozijo da plateia quando afirmou que o TST tem “uma
concepção de má vontade com o capital”. Em entrevista após a palestra sublinhou,
ainda:

eu tenho a impressão de que houve uma radicalização da jurisprudência no sentido
de uma hiper-proteção do trabalhador, tratando-o quase como dependente de
tutela, em um país industrialmente desenvolvido que já tem sindicatos fortes e
autônomos[2].
Afirmou, ademais, arrancando risos da endinheirada plateia: “esse tribunal é
formado por pessoas que poderiam integrar até um tribunal da antiga União
Soviética. Salvo que lá não tinha tribunal”[3].
Decerto, esse “figurino” descrito por Mendes não se encaixa no atual presidente
do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho, cuja afinidade
ideológica com o Ministro do STF é cristalina, e já anteriormente explicitada
quando atuaram juntos na área jurídica do governo FHC. No dia 21 de setembro,
enquanto Temer apresentava, “de bandeja”, o predomínio do negociado sobre o
legislado e a terceirização irrestrita a grandes empresários norte-americanos,
em um nababesco almoço em Nova York, Ives Gandra preconizava, em um evento em
São Paulo, ambas as medidas, sublinhando o papel destacado que o STF já está
desempenhando. Além do mais, ratificou a posição em entrevista ao jornal Estado
de São Paulo. O Presidente do TST falou em “desbalanceamento” nas decisões do
Tribunal a favor dos empregados[4]. Posteriormente, no dia 6 de outubro, em uma
declaração a um telejornal de uma grande empresa midiática, o Presidente da
República salientou o quanto “era interessante como o próprio Judiciário já está
começando a fazer a reforma trabalhista”, de maneira que o governo não,
necessariamente, precisaria “levá-la adiante”. E, de fato, por intermédio
especialmente do STF, o Poder Judiciário está atuando na contra-reforma
trabalhista. Vale resgatar que em setembro o Ministro Teori Zavascki, na
condição de relator, acatou a primazia de um determinado conteúdo “negociado”
sobre o legislado, ao acolher a argumentação do recurso de uma usina de
cana-de-açúcar contra a reivindicação de um cortador de cana de Pernambuco[5].
Além do mais, o Supremo Tribunal Federal está na iminência de julgar o Recurso
Extraordinário 958.252 impetrado pela empresa Celulose Nipo-brasileira
(Cenibra), condenada pela Justiça Trabalhista por “transferência fraudulenta e
ilegal” de suas atividades-fim. Na órbita desse julgamento encontra-se a Súmula
331 do TST, que vincula ao tomador de um serviço a obrigação de assumir as
obrigações trabalhistas no caso de desrespeito do contrato de trabalho por parte
da empresa sub-contratada.
Um desdobramento muito provável do desmanche da (cambaleante) correia de
transmissão entre trabalho formalizado, assalariamento e direitos trabalhistas é
a massificação de prestadores de serviços, dependentes de renda diretamente
auferida pelo serviço prestado, excluídos dos chamados “salários indiretos” e
com vínculos rarefeitos com as garantias escritas na legislação trabalhista,
posto que o “negociado” pode predominar sobre o “legislado”. “Haverá metalúrgico
sem metalúrgica, comerciário sem comércio, professor sem escola[…]. Eles serão
funcionários de um escritório […] que vai encaminhar trabalhadores para essa ou
aquela área conforme a sua atividade”, adverte o senador Paulo Paim, relator do
Projeto de Lei da terceirização[6]. Aqueles que não se converterem em
prestadores de serviços terceirizados, ainda, assim, não terão assegurados, de
antemão, descanso remunerado, férias, décimo terceiro salário, dentre outros
direitos. Se as férias durarão 30 ou 5 dias, será uma matéria suscetível a
“negociação”, por exemplo. Os estragos da contra-reforma trabalhista alcançam,
ainda, o financiamento da Seguridade Social, composta pelo tripé saúde,
previdência e assistência; atingem também a vida sindical do país, já
fragilizada por comportar, apenas minoritariamente, sindicatos autônomos e
classistas. Trata-se, em síntese, de um combustível aditivado sobre esse
fenômeno que especialistas, como Marcio Pochmann, denominam de “uberização” das
relações de trabalho; trata-se da ampliação da imensa massa de “precariados”
espalhada pelo mundo.
A obsessão para o rebaixamento dos custos de produção e reprodução da força de
trabalho, e o consequente combustível à “uberização” do trabalho, envolve também
a pressão pelo fim do aumento continuado do salário mínimo. Essa pressão decorre
do fato de que o salário mínimo serve como uma espécie de balizamento indireto
ou extra-oficial das negociações salariais, em geral. Entre os anos de 2002 a
2014, a valorização real foi de 72%, um percentual modesto se tomado como
parâmetro a secular iniquidade social do país (que engloba níveis alarmantes de
concentração de renda e riqueza), mas significativo se levada em consideração a
ausência de políticas de valorização continuada do salário mínimo ao longo da
história republicana brasileira. Ao contrário, o arrocho salarial foi um dos
vetores estruturantes do projeto de modernização conservadora implementado pela
ditadura empresarial-militar. Fato é que a elevação do salário mínimo no período
lulopetista revelou-se também como intolerável para as elites empresariais.
Essa mesma elite empresarial, capitaneada pelo setor ou fração
financeiro-rentista, mantém-se permanentemente vidrada com a garantia da
“solvência” do Estado brasileiro. E isso, para quê? Preservar as condições para
o “pagamento” da incomensurável dívida social? Não. Para “honrar” rigorosamente
o pagamento dos juros e serviços de um sistema (não auditoriado) de
endividamento público. O agente financeiro e hoje Ministro da Fazenda Henrique
Meirelles falou, por exemplo, em “reverter” a “queda da confiança da
sustentabilidade da dívida pública”. São com essas perspectivas que tal elite
insiste na tese segundo a qual o orçamento público do país não comporta a
Constituição Federal de 1988 – o que, na prática, é assumir que uma enorme massa
de mulheres e homens não cabe no Produto Interno Público (PIB) brasileiro. A
propósito, na primeira visita oficial ao país depois do impeachment da
presidenta Dilma, o Fundo Monetário Internacional prescreveu uma “revisão” no
modelo de valorização anual do salário mínimo (herdado do período lulopetista) e
uma (contra)reforma da Previdência (que englobe o acesso a benefícios
previdenciários e os reajustes desses benefícios), alegando que são medidas
necessárias para a “recuperação da sustentabilidade fiscal”, além de uma
(contra)reforma trabalhista.
Tais prescrições encontraram fina sintonia com o programa “Ponte para o Futuro”
que apresentou à elite empresarial um vasto cardápio contra-reformista, cujo
alcance pode ser dimensionado pelas considerações de um dos seus elaboradores –
Roberto Brant, ex-ministro da Previdência no governo FHC: esse programa “não foi
feito para enfrentar o voto popular”, afinal de contas “com um programa desses
não se vai para uma eleição”. E, de fato, não foram para uma eleição. O
impeachment desprovido de crime de responsabilidade serviu como uma descarada
“eleição indireta”. No rol tenebroso de desmantelamento de direitos, destaca-se
também a (contra)reforma da Previdência que, a propósito, contém uma das medidas
mais prejudiciais à organização da vida cotidiana de milhões de famílias,
localizadas nos mais diversos lugares do território nacional: a desindexação da
aposentadoria perante o salário mínimo. Com a desindexação almeja-se instaurar
como meio exclusivo de atualização/correção dos valores da aposentadoria e
demais benefícios a variação da inflação. Na prática, isso impede que aumento do
salário mínimo reverbere-se como aumento da aposentadoria, fonte principal de
renda de milhões de brasileiras e brasileiros. E não para por aí: na proposta de
(contra)reforma previdenciária consta a redução pela metade do valor das
pensões, suplementando-os com 10% por dependente, tanto no âmbito público quanto
privado, bem como a proibição da acumulação de aposentadoria e pensão[7].
Ademais, eleva a idade mínima para 65 anos (com uma espécie de “gatilho” para
aumentar o piso da idade conforme a elevação do tempo de vida médio
pós-aposentadoria) e a estende também para mulheres, revelando um inaceitável
viés machista[8].
Cabe registrar, ainda, que a coerência (incoerente) do FMI não deixaria de
contemplar a proposta de imposição de um teto para gastos públicos, por 20 anos,
contida na PEC 241 – na verdade, teto para os chamados gastos primários, pois os
gastos com juros ficarão imunes ao congelamento. Chamada de “novo regime
fiscal”, visa reduzir despesa primária da União em percentual do PIB. Na
prática, isso significa atrelar e limitar os gastos sociais à variação da
inflação do ano anterior, independente do aumento da população e do nível de
arrecadação. E, na medida em que fica amarrado à variação inflacionária, o “novo
regime fiscal” esvazia o já debilitado papel de participação na formação do
orçamento público por parte de trabalhadores e trabalhadoras. Para se
dimensionar o estrago, é importante considerar estimativas tais como: perda de
recursos para a saúde pública na ordem de R$ 434 bilhões[9]; diminuição anual de
cerca de R$ 24 bilhões de investimentos na educação (e obstrução da vinculação
obrigatória de receita de 18% da arrecadação)[10]; perda de R$ 868 bilhões na
assistência social[11]; um salário mínimo de R$ 400,00, caso a PEC estivesse em
vigência desde 1998[12]. Se o PIB do Brasil crescer nos próximos 20 anos no
ritmo dos anos 80 e 90, os gastos públicos em relação ao PIB passariam de 40
para 25%. Esse patamar de gasto público é praticado, por exemplo, por Burkina
Faso. Se crescer no nível das taxas mais altas dos anos 2000, o percentual seria
de 19%, conforme praticado por Camarões[13].
É importante considerarmos que na mesma perspectiva de apaziguar os “ânimos” do
mercado e de causar “boa impressão” às agências de avaliação de risco (que
orientam investimentos ao redor do mundo globalizado), há quase duas décadas já
se pratica o chamado “superávit primário” no Brasil. Apesar da enxurrada de
recursos públicos para o mercado financeiro (bombeados, principalmente, pelo
sistema da dívida pública), o endividamento bruto do setor público pulou de
cerca de 40% do PIB, em 1998, para cerca de 58%, em 2013. No mesmo período, a
carga fiscal não diminuiu; ao contrário, elevou-se 6% em relação ao PIB. Desde
2006, a carga tributária situa-se em torno de 33% do PIB. O grande salto dos
impostos aconteceu nos governos FHC: de 26,1% do PIB, em 1996, passou para
32,2%, em 2002. O mesmo ocorreu com a dívida pública: de 30,6% do PIB, em 1995,
para 60,4%, em 2002. A autoproclamação que o PSDB tenta disseminar (com o
beneplácito da grande mídia) de gestores fiscais austeros, promotores da
“responsabilidade fiscal”, não encontra amparo nesses dados. A manifestação
dessa “austeridade” ocorre, na verdade, nos minguados investimentos sociais que
perpetuam as iniquidades seculares da formação social brasileira (conforme o
parágrafo seguinte ilustrará melhor).
Com efeito, o déficit público do ano de 2015 foi de 10,34% do PIB – R$ 613,5
bilhões. Esse montante de débito, que inclui gasto financeiro com o sistema da
dívida, é chamado déficit nominal. O déficit primário (referente ao “desempenho
fiscal de União, estados, municípios e empresas sob controle dos respectivos
governos, excluídos bancos estatais, Petrobras e Eletrobras”) representa fração
amplamente minoritária do déficit nominal. No ano de 2015, foi de 1,88% do PIB –
R$ 111, 249 bilhões. Logo, R$ 501 bilhões (8,46% do PIB) decorreram da sangria
do fundo público perpetrada pelo sistema da dívida pública. A PEC, então, impõe
um congelamento de gastos públicos, excetuando-se o principal sorvedouro de
fundo público: os juros da dívida pública.
Vale registrar, ainda, que as habilidades extraordinárias para maquinações
parlamentares de Temer e companhia, aludidas no início do artigo, também operam
na concepção, votação e implementação da PEC 241/255. Essa Proposta de Emenda
Constitucional condensa e abrevia outras medidas arroladas no “Ponte para o
Futuro”, como, por exemplo, a desvinculação de receitas obrigatórias para a
educação e saúde e a interrupção da política de valorização continuada do
salário mínimo, partindo de um diagnóstico de rigidez orçamentária que
comprometeria a “saúde” fiscal do Estado brasileiro (dentro daquela avaliação
geral de que a euforia da redemocratização gerou uma Constituição Federal
incompatível com um padrão orçamentário “realista”).
De fora também do garrote de duas décadas ficou um mecanismo de endividamento
disfarçado, que consiste na “securitização de créditos da dívida ativa” – grosso
modo, a conversão de dívidas em títulos passíveis de serem negociados no mercado
financeiro – visando a “antecipação de receitas”. Há um Projeto de Lei do Senado
– 204/2016 – voltado estritamente à legalização desse mecanismo camuflado de
endividamento. Em um cenário de queda vertiginosa de arrecadação, os
governantes, mediante a permissão contida no projeto de lei de venda de dívidas
para além do prazo de suas respectivas gestões, buscarão, avidamente, a
antecipação de receitas, turbinando, ainda mais, o já turbinado e intrincado
sistema público de endividamento. É endividamento gerando mais endividamento, e
a resposta para isso será mais endividamento, suscitando um círculo vicioso que
amplifica a tendência estrutural de financeirização/ficcionalização da produção
capitalista. Na esteira desse projeto de lei, há graves riscos de deterioração,
ainda maior, do quadro de endividamento (e das respectivas respostas fiscais),
na medida em que o PLS não estabelece limite para o deságio na negociação dos
títulos de dívida, ou seja, para a diferença entre o valor nominal e o valor
negociado (em geral, mais baixo). Trata-se, como visto, de um estímulo
institucionalizado à lógica curto-prazista, típica de um capitalismo
financeirizado de ponta a cabeça. A escala e espraiamento do endividamento
público (não só no Brasil, mas no mundo, guardadas as respectivas
particularidades), a dependência dos entes públicos perante os mecanismos de
endividamento, tornam as dívidas públicas combustíveis indispensáveis para o
funcionamento global do sistema produtor de mercadorias, tanto no que se refere
à esfera da produção quanto à esfera da circulação. E considerar que há poucos
meses houve um impeachment “motivado” por “pedalada fiscal”… É tragicômico! O
autor do PLS 204/2016 chama-se José Serra, senador pelo PSDB de São Paulo, atual
ministro das Relações Exteriores.
Perpassando esse conjunto de medidas contra-reformistas o que há é um processo
aberto de pilhagem, rapinagem, espoliação dos fundos e ativos públicos, que
elimina, inclusive, mediações mínimas necessárias para o funcionamento de
modelos políticos de conciliação, como o lulopetista. A verve da espoliação é
tamanha que nem o bolsa-família ficará de fora da “raspagem”. O ministério de
Desenvolvimento Social retirou o benefício de 1,1 milhão de beneficiários, em
nome de uma economia de R$ 2,4 bilhão por ano. Desse montante, 469 mil
beneficiários foram eliminados do Programa porque alcançaram R$ 440 de renda per
capta[14]. O bolsa-família, importante lembrar, corresponde a cerca de 0,5% do
PIB: em 2015, contou com não mais do que R$ 27,5 bilhões de orçamento. Além da
“raspagem” profunda de fundo público, há também numa medida como essa um
propósito de focalizar ainda mais a focalização, retrocedendo a concepções
estritamente neoliberais de programas de transferência de renda, exercitadas na
década de 90. Em relação à queima dos chamados ativos públicos, o tratamento
governamental conferido ao pré-sal, concatenado aos interesses imediatos de
transnacionais do petróleo, serve como uma ilustração ostensiva do processo
aberto e imediato de espoliação.
Um fio condutor conceitual muito interessante para apreender esse processo
imediato de pilhagem foi elaborado por David Harvey. O autor identifica no
capitalismo das últimas três décadas do século XX, que adentra pelo século XXI,
o que denominou de acumulação por despossessão ou espoliação[15]. O capitalismo
atravessado pela crise estrutural, irrompida no limiar da década de 70 do século
XX, notabiliza-se por reeditar e ampliar um regime de espoliação aberta, direta,
crua, imediata, que na esteira do próprio Harvey e outros formuladores críticos
(como Arantes[16], Menegat[17], Becher & Villar[18]) pode ser tratada como a
(re)ativação, por meios high-tech, da metodologia da assim chamada acumulação
primitiva (mas, num contexto de crise estrutural e sistêmica do capitalismo, e
exatamente por causa dos empecilhos e obstáculos para a acumulação capitalista
oriundos dessa crise). Em perspectiva análoga, Altvater sintetiza que “[…] a
apropriação não pela produção, mas pela desapropriação, é uma tendência da
economia mundial do século XXI”[19], lembrando que o atual contexto de crise é
marcado pela super-produção (e não sub-produção). A lógica monetária é
extravasada para os mais diversos e moleculares escaninhos da vida cotidiana,
exprimindo, assim, uma monstruosa pretensão (potencialmente) totalitária de
domínio do mundo “natural” e “sociocultural”, ou seja, das “condições objetivas”
e “subjetivas”.
Seguindo esse fio condutor conceitual, a atual prioridade rentista no circuito
de reprodução capitalista, em um contexto na qual a maioria esmagadora dos
fluxos econômicos globais tem procedência financeiro-especulativa, pode ser
tomada como expressão fundamental da acumulação por despossessão. A abrangência
de formas de obtenção de renda vinculadas à propriedade de ativos financeiros
diversos (como títulos da dívida pública), patentes, terra, imóveis etc. é
impressionante. Por exemplo, com a aprovação na Organização Mundial do Comércio
do Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual (TRIPS, na sigla original
inglesa), no ano de 1995, os ganhos das chamadas “indústrias intensivas em
conhecimento” (que representam 30% do PIB mundial) provêm muito mais das rendas
auferidas com as propriedades intelectuais do que com a produção propriamente
dita de mercadorias (sejam bens ou serviços)[20]. Esse contexto
econômico-político-cultural assenta-se sobre uma super-acumulação de capital na
forma monetária (um dos indícios da crise estrutural de super-acumulação do
capitalismo). Nele não é possível delimitar, com exatidão, onde começa e termina
o “setor especulativo” e a “acumulação real”. Isso não quer dizer que não exista
um setor capitalista industrial e um setor capitalista financeiro, nem focos
localizados de contradições entre ambos. Mas, constitui projeção fantasiosa
contrapor, de maneira cabal e enfática, um setor industrial “essencialmente
virtuoso” por se concentrar nos “investimentos produtivos” em detrimento de um
financeiro-especulativo, que não faz outra coisa senão “parasitar” as riquezas
produtivas. É fato que a manutenção estratosférica da taxa de juros selic
prejudica a produção industrial e beneficia abundantemente o setor financeiro,
para ficarmos em um exemplo paradigmático. Porém, embaralhando tentativas
esquemáticas (ou esquematistas) de refúgio (teórico e prático), a
financeirização do capital industrial (de tipo monopolista, especialmente) é
também um fato contemporâneo, e trata-se não apenas da cada vez mais compulsiva
dependência do crédito diante da imensa elevação da composição orgânica do
capital: trata-se, ademais, do papel exercido pelos chamados ganhos
financeiro-especulativos em detrimento dos chamados “ganhos operacionais” na
insaciável busca de lucratividade. Analisando o balanço de grandes conglomerados
industriais de tipo monopolista, em diversos ramos produtivos e regiões do
mundo, conseguimos verificar o peso dos resultados financeiros na composição dos
lucros líquidos.
Logo, chamemos a coisa pelo nome: pilhagem, rapinagem, espoliação! Vidrados e
agarrados a essa coisa, os endinheirados e poderosos no Brasil insistem na tese
segundo a qual o orçamento público do país não comporta a Constituição Federal
de 1988 – o que, conforme já registrado, significa assumir, na prática, que uma
enorme massa de mulheres e homens não cabe no Produto Interno Público (PIB)
brasileiro. Nada além de uma monstruosa coerência com as coordenadas de uma
formação social estruturada sobre séculos de escravidão, rapinagem de recursos
naturais, que naturaliza o extermínio da juventude negra, pauperizada e moradora
de favelas.
NOTAS
[1] Balarin, Raquel. Juro? Não. Banco quer reforma trabalhista. 24 de agosto de
2016. Disponível em
http://www.feeb-spms.org.br/noticia/noticias/juro_nao_banco_quer_reforma_trabalhista.html.n
Acesso em 2 de setembro de 2016.
[2] Mello, Daniel. Gilmar Mendes diz que TST tem “má vontade” com empresas. 21
de outubro de 2016. Disponível em
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-10/gilmar-mendes-diz-que-tst-tem-ma-vontade-com-empresas.r
Acesso em 24 de outubro de 2016.
[3] Mello, Daniel. Gilmar Mendes diz que TST tem “má vontade” com empresas. 21
de outubro de 2016. Disponível em
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-10/gilmar-mendes-diz-que-tst-tem-ma-vontade-com-empresas.l
Acesso em 24 de outubro de 2016.
[4] Alves, Murilo Rodrigues. Presidente do TST vê ‘desbalanceamento’ da Justiça
em favor dos trabalhadores. 29 de outubro de 2016.
http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,presidente-do-tst-ve-desbalanceamento-da-justica-em-favor-dos-trabalhadores,10000085271
[5] “O primeiro lance do Supremo na reforma veio em setembro. Foi no processo de
um cortador de cana em Pernambuco, Moisés Lourenço da Silva, contra um
ex-empregador, a Usina Central Olho D’Água. Da Silva trabalhara na empresa 45
dias como temporário em 2010. Ia de casa para o canavial umas 4 h, 4:30 h da
manhã em um ônibus da usina, pegava no batente às 6 h, parava de 20 a 30 minutos
às 11 h, dava baixa às 17 h e voltava ao lar na mesma condução patronal, rotina
repetida a cada 5 dias, com só um de descanso posterior. Um acordo coletivo
entre sindicato e usina previa que o tempo dos cortadores no ônibus não seria
considerado expediente nem renderia hora extra, ao contrário do previsto na CLT
desde 2001. Em troca, o trabalhador receberia cesta básica na entressafra,
energético do tipo Red Bull e pagamento progressivo, conforme cortasse mais
cana, entre outras coisas. Em outubro de 2010, já fora da usina, Da Silva entrou
na Justiça, a reivindicar horas extras relativas ao tempo dentro da condução
patronal. Em março de 2011, o Juiz Edson Luis Brik, da Vara do Trabalho de
Nazaré da Mata, noroeste de Recife, deu ganho de causa ao trabalhador, cumpridor
na prática de uma jornada diária de 9h30, anotou a sentença. A usina recorreu,
perdeu no TST, o processo foi ao STF e, em 8 de setembro, o relator Teori
Zavascki, deu razão à Usina. Para ele, Da Silva não merecia horas extras, por
causa das compensações da convenção coletiva. É de se perguntar se o acordo era
de fato bom para os trabalhadores. Oferecer energético e pagamento progressivo é
um convite para o trabalhador passar mais tempo no canavial, vantagem para a
usina, portanto”. Barrocal, André. O brasileiro em liquidação. Carta Capital. 26
de outubro de 2016. Páginas 28 a 33.
[6] Drummond, Carlos. Terceirização, uma solução de terceira para a economia. 26
de setembro de 2016. Disponível em
http://www.cartacapital.com.br/revista/919/terceirizacao-solucao-de-terceira.
Acesso em 27 de setembro de 2016.
[7] Doca, Geralda. Proposta da reforma da previdência vai cortar pensões. 29 de
setembro de 2016. Disponível em
http://oglobo.globo.com/economia/proposta-de-reforma-da-previdencia-vai-cortar-pensoes-20198047.t
Acesso em 1 de outubro de 2016.
[8] Alves, Murilo Rodrigues. Previdência pode ter ‘gatilho’ para idade mínima no
longo prazo superar 65 anos. 28 de setembro de 2016. Disponível em
http://atarde.uol.com.br/economia/noticias/1804761-previdencia-pode-ter-gatilho-para-idade-minima-no-longo-prazo-superar-65-anos.r
Acesso em 1 de outubro de 2016.
[9] Claudino, Viviane. PEC 241 pode representar perda de R$ 434 bilhões ao SUS,
avalia CNS. 7 de outubro de 2016. Disponível em
http://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2016/10out06_PEC241_pode_representar_perda_434_bilhoes_SUS.html.2
Acesso em 8 de outubro de 2016.
[10] Tokarnia, Mariana. Estudo prevê perda de R$ 24 bi anuais para a PEC 241;
MEC contesta. 14 de outubro de 2016. Disponível em
http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-10/educacao-pode-perder-r-24-bi-anuais-por-conta-da-pec-241-mec-nega.n
Acesso em 14 de outubro de 2016.
[11] Carneiro, Mariana. Assistência social perderia bilhões, com teto de gastos.
15 de outubro de 2016. Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/10/1823029-assistencia-social-perderia-bilhoes-com-teto-de-gastos-diz-estudo.shtml.6
Acesso em 15 de outubro de 2016.
[12] Mínimo seria de R$ 400 se limite de gastos valesse desde 98, dizem estudos.
11 de outubro de 2016. Disponível em
http://economia.uol.com.br/noticias/infomoney/2016/10/11/salario-minimo-seria-de-r-400-hoje-e-saude-pode-perder-r-743-bi-em-20-anos-2-estudos-polemicos-sobre-a-pec-241.htm.a
Acesso em 13 de outubro de 2016.
[13] Carvalho, Laura. A plutocracia não cabe no orçamento. 09/06/2016.
Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/2016/06/1779720-a-plutocracia-nao-cabe-no-orcamento.shtml.r
Acesso em 15 de junho de 2016.
[14] Governo Temer suspende 1,1 milhão de benefícios do Bolsa Família. 7 de
novembro de 2016. Disponível em
http://www.cartacapital.com.br/politica/governo-temer-suspende-1-1-milhao-de-beneficios-do-bolsa-familia.o
Acesso em 7 de novembro de 2016.
[15] Harvey, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.
[16] Arantes, Paulo. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007.
[17] Menegat, Marildo. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
[18] Becher, Mariela Natalia & Villar, Andre Gomes. Da acumulação por
despossessão às formas embrionárias da emancipação humana. Argumentum, Espírito
Santo, v.5, n.2, 2013. Disponível em
http://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/5962. Acesso em 13 de outubro
de 2016.
[19] Altvater, Elmar. O fim do capitalismo como o conhecemos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010.
[20] Drummond, Carlos. 18/11/2016. No século XXI, os senhores feudais
enriquecem. Disponível em
http://www.cartacapital.com.br/revista/927/no-seculo-xxi-os-senhores-feudais-enriquecem.p
Acesso em 19/11/2016.
***
Felipe Brito é Professor do curso de Serviço Social da UFF de Rio das Ostras.
Atua no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Organizador (em conjunto
com Pedro Rocha de Oliveira) e um dos co-autores do livro Até o último homem:
visões cariocas da administração armada da vida social. Autor do artigo
“Territórios Transversais” (em conjunto com Pedro Rocha de Oliveira) que integra
o livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do
Brasil. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
In
PCB
https://pcb.org.br/portal2/12825
3/12/2016

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