sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

      Desfazer o sofrimento

  

       por Sandra Monteiro 


       No final de Novembro foi apresentado no Fórum Gulbenkian de Saúde Mental
      um estudo coordenado pelo médico José Caldas de Almeida, presidente do
      Lisbon Institute of Global Mental Health [1] , que divulgou dados
      aterradores, mas não propriamente surpreendentes, sobre a evolução da
      saúde mental dos portugueses entre 2008 e 2015. Os dados referem-se, em
      particular, à prevalência de duas patologias: as perturbações depressivas
      e as perturbações de ansiedade. O Fórum deste ano foi dedicado ao tema
      "Crises Socioeconómicas e Saúde Mental: da Investigação à Acção" e os
      resultados do estudo são, de facto, ilustrativos do peso que os chamados
       "determinantes sociais da saúde" têm na criação de populações saudáveis
      ou doentes. Em causa estão factores económicos e sociais que interferem na
       distribuição dos rendimentos, na criação de bem-estar ou de pobreza, na
      privação ou no acesso a bens essenciais (alimentação, habitação, educação,
      segurança ou cuidados médicos).
       O estudo, ao analisar as evoluções na saúde mental ocorridas neste
      período – que coincide com a eclosão da crise financeira internacional e
      com a aplicação a Portugal de destruidores programas de austeridade –,
      regista um significativo agravamento das depressões e das perturbações de
       ansiedade. Note-se que isto acontece num país que já em 2008 tinha uma
      prevalência de doença mental superior à média europeia (e em crise desde o
      início do século, curiosamente). Se em 2008 correspondia a 19,8% a parte
      da população afectada, em 2015 este valor disparou, atingindo os 31,2% [2]
       . Tudo piorou, entre novos casos e agravamentos dos já diagnosticados:
       nos "problemas ligeiros" o aumento foi de 13,6% para 16,8%, nos
       "problemas moderados" foi de 4,4% para 7,6%, e nos "problemas graves" de
      1,8% para 6,8%. As causas são as expectáveis no contexto das políticas com
      que os neoliberais responderam à crise: a doença surge relacionada com a
      diminuição dos rendimentos (salários e pensões), com a dificuldade em
      aceder a bens essenciais e em pagar as despesas.
       Este é um dos retratos mais eloquentes das políticas de austeridade como
      construção do sofrimento na vida das pessoas comuns. De um sofrimento que
      se vai generalizando e intensificando – e que vai demorar muito tempo até
      ser revertido. Para o combater, os autores do estudo apontam, como lhes
      compete, medidas de reforço na área da saúde e de uma assistência médica
      (que não pode limitar-se à prescrição de fármacos, antidepressivos e
      ansiolíticos) dirigida para os grupos mais afectados, dos idosos aos
      jovens, e com especial atenção às situações familiares mais
      desestruturadas, o que implica apostar em serviços integrados e de
      proximidade.
       Mas desfazer o sofrimento que os números da doença mental revelam (e
      ainda se aguardam os dados dos suicídios ou do consumo do álcool) não é
      tarefa apenas para os profissionais da saúde. Fazê-lo exige, justamente,
      mudanças de políticas em todos os determinantes sociais e económicos que
       estão a montante da doença. Parte desse esforço começou a ser feito com a
      actual solução governativa. A reversão dos cortes de salários e pensões, a
      actual tendência de aumento do emprego e as iniciativas, prometidas pelo
       executivo para 2017, de atacar o quadro de precariedade em que tantos
       profissionais trabalham há anos na função pública, são medidas que vão
      nesse sentido.
       Correm, porém, o risco de não serem suficientes para suscitar as
       melhorias necessárias. Grande parte do sofrimento diário que atira as
      pessoas para a depressão e para a ansiedade começa no trabalho e
      estende-se ao conjunto da vida. No trabalho e, por maioria de razão, no
      desemprego. Sobretudo quando este último não é protegido por prestações
      sociais como o subsídio de desemprego, como acontece com grande dos
      desempregados, numa substituição das lógicas do Estado-providência pelas
       da sociedade-providência (ou até da família-providência), fenómeno tanto
      mais inaceitável quanto impõe uma verdadeira lotaria da classe em que se
      nasceu, da família em que se nasceu.
       Do que acontece no mundo do trabalho, tão corroído nos últimos anos – do
      quase desaparecimento da contratação colectiva à tendência para
       substituição do salário médio pelo salário mínimo [3] – decorre grande
      parte do que vai determinar o sofrimento quotidiano e o medo do futuro. Do
      salário depende o poder de compra no presente e a pensão que se receberá
      quando não se puder trabalhar (se bem que a indexação desta ao aumento da
      esperança de vida permita ter dúvidas sobre se esse dia algum dia
      chegará…). Do salário, mas também da estabilidade do contrato de trabalho,
       depende a possibilidade de accionar uma baixa na doença, de fazer férias,
      de concretizar o desejo da maternidade e da paternidade, de prestar
      assistência aos pais quando eles chegam à velhice ou estão doentes, de
      ajudar os filhos quando estão desempregados ou subempregados.
       No trabalho, os trabalhadores são forçados a contactar com os danos
      causados pelo discurso hegemónico dos últimos anos: por muito que se
      empenhem, são eles os acusados de tudo o que vai mal (metamorfose laboral
      da narrativa do "gastar acima das possibilidades"); são eles os "ingratos"
      que deviam aceitar tudo o que os explora ao limite, tudo o que os degrada
      profissional e humanamente, porque, apesar de tudo, "ainda" têm um emprego
       quando outros não têm, "ainda" têm uma remuneração que podia ser pior,
      "ainda" têm a compreensão paternalista de um patrão (ou um subchefe de
      qualquer categoria) que até "aceita" que ele vá a uma consulta médica,
      desde que fique até mais tarde a fazer o lhe compete, tenha de ir buscar o
      filho à escola ou não.
       No trabalho, os trabalhadores são forçados a lidar também com os danos
      causados pelas práticas que o sistema impôs: crescentemente, o trabalhador
      é pressionado para encontrar as formas de financiar o seu posto de
      trabalho, se não no presente, pelo menos para ter a perspectiva de o
      manter no momento da renovação (para já não falar do momento de progressão
      na carreira, verdadeiro capítulo de metafísica na actual filosofia do
       emprego). Se não o fizer, a ameaça do desemprego lá estará, como poderoso
      agente de formatação da sua actuação diária… e como poderoso agente
      depressor e ansiogénico. Ironia das ironias, esta experiência, que é
       vivida por cada um de forma muito individual – agruras da extrema
       degradação da actuação colectiva (sindical, associativa) –, surge aos
      trabalhadores como o mundo novo do empreendedorismo para toda a vida
      quando, na realidade, o que está a operar-se é um movimento global de
      transferência e concentração de riqueza a que o seu comportamento
      individual é tão alheio quanto o empenhamento dos Estados em cumprir
       défices e outras metas.
       É da construção de solidariedades no mundo do trabalho, do emprego ao
      desemprego, que vai depender grande parte do que a seguir pode ser
       construído para desfazer o sofrimento de uma parte tão imensa da
       população portuguesa. Diminuir a violência a que os trabalhadores estão
      diariamente sujeitos, e a que acrescem os problemas de rendimentos,
      prestações sociais e pensões, implica responder à atomização dos
      indivíduos pela sociedade neoliberal com estratégias de acção colectiva e
       com políticas que garantam emprego de qualidade, com direitos, e um
       Estado social robusto. Menos do que isto e vamos ter, nos próximos anos,
       um país perigosamente deprimido, ansioso e assustado com o futuro. Um
       país doente.

      9/Dezembro/2016
        Notas
       [1] "Economic Crises and Mental Health in Portugal; Preliminary Results
      of the National Mental Health Survey Follow-Up", 
      www.lisboninstitutegmh.org .
       [2] Ver Romana Borja-Santos, "Um terço da população já sofre de ansiedade
      ou depressão",  Público  , 25 de Novembro de 2016.
       [3] Ver Catarina Almeida Pereira, Carvalho da Silva: "Salário mínimo
      nacional pode transformar-se no salário nacional",  Jornal de Negócios,
       15 de Fevereiro de 2016. 
       O original encontra-se em  pt.mondediplo.com/spip.php?article1144 
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/portugal/saude_mental_09dez16.html
1/12/2016

Nenhum comentário:

Postar um comentário